Parte IX

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Parte IX

O sol já estava quase nascendo quando Loran sacudiu a cabeça em concordância sobre algo que eu disse e olhou para o mar de repente.

– Sabe, fiquei com medo de pular na água. Eu ouvi histórias, e alguns amigos meus juram que são verdadeiras... Já ouviu falar da lenda das Três Mulheres?

– Lenda das Três Mulheres? – refleti a pergunta. – Nunca.

– Pois é, dizem por aí que são três criaturas, um pouco parecidas com humanas, mas bem mais monstruosas. Elas são cegas, nadam como peixes e atacam os homens. Elas os devoram.

Franzi o cenho.

– Isso é horrível!

Então parei de respirar completamente. Nadam como os peixes. Olhei para mim mesma e toquei minhas pernas discretamente. Havia um tipo de textura escamosa nelas. Fiz força para não ofegar. Olhei para minha mão apoiada no barco e aquela pele solta estava bem grudada de novo, quase imperceptível. Fingi que estava mexendo no cabelo e toquei a parte de trás de minhas orelhas, onde tinha doído, e, para meu terror, havia ali uns pequenos buracos que não existiam antes. Guelras.

Eu estava me tornando um peixe! Ou pior, podia estar me tornando um monstro.

Levantei-me.

– Loran, você tem que me levar de volta agora. Tive um dia muito ruim, preciso descansar.

Ele me olhou parecendo preocupado e um pouco decepcionado.

– Tudo bem, estamos bem aqui já, só mais alguns metros e ancoramos.

– Obrigada.

Paramos o barco no píer e Loran segurou minhas mãos.

– Espero vê-la em breve. Tem certeza de que não precisa que eu a acompanhe até em casa?

– Absoluta. Não se preocupe. – Sorri e dei um beijo de boa-noite nele. Bem, na verdade era quase bom-dia.

Então segui sozinha. Ainda restavam algumas horas até o amanhecer. Eu me deitaria para dormir um pouco (se é que conseguiria), pois estava mesmo caindo de cansada, após duas noites inteiras em claro, e logo em seguida iria ver Salizar. Ele me devia muitas explicações.

***

Salizar mal virou a placa de ABERTO e eu entrei na loja abruptamente. O Encantador levou um susto e se virou, encontrando-me parada ao portal. Encarei-o com dureza, meu peito subindo e descendo rápido.

Era um alívio sair da claridade do dia; eu não conseguia enxergar direito lá fora. Desde que acordei, era como se meus olhos lutassem em trabalhar. Minha visão falhava a todo momento, e eu tinha que ficar piscando e piscando para tentar clarear a vista. 

Meus trajes também indicavam que havia algo errado. Além das roupas velhas de sempre, eu estava usando uma capa grande, tentando esconder qualquer parte da minha pele brilhosa e cheia de novos relevos. Eu era genuinamente uma aberração agora.

– Ah. Você – ele disse conformado. É claro que estava esperando eu chegar e bufar em sua cara.

– Sim. Eu – respondi gélida. – A garota que você enfeitiçou, seu bruxo maligno!

Ele deu as costas para mim e começou a andar para trás do balcão, um sutil sorrisinho de desdém esticando seu rosto velho.

– Então começou – ele disse.

Andei rápido até a bancada e bati a palma na superfície com força.

O que demônios pensa que está fazendo? Eu não sou um experimento! O QUE FEZ COMIGO?          

Ele se aproximou do balcão, do lado oposto ao meu, e me encarou de frente, seus cotovelos apoiando na bancada.

– Eu apenas lhe dei o que precisava. Você tinha que aprender sua lição. Ou, devo dizer, está no processo.

Espremi os dentes e me inclinei ainda mais para perto, perfurando os olhos cinzentos dele com o meu novo par que se tornava inútil.

– Você precisa me dar um antídoto – exigi. – Agora.

– Ou o quê? – ele me testou, uma sobrancelha se erguendo.

– Vou destruir sua vida.

– Talvez a sua seja destruída antes – rebateu ele, muito frio e calmo.

Meu coração acelerou e quase parou ao mesmo tempo. Ofeguei.

– Então quer fazer de mim um monstro? Só porque roubei uma coisa sua para tentar sair do buraco que se tornou minha vida? Isso é que faz de você um monstro!

– Você é muito ingênua, Agnes – Salizar respondeu, indiferente ao meu pânico... ao meu ódio. – Tem muito que aprender.

Eu estava tão trêmula que quase podia sentir o vidro do balcão sob minhas mãos chacoalhando.

– Foi você que criou essas Três Mulheres? As mulheres-peixe que aterrorizam o mar? A vida de quantas outras garotas sonhadoras você estragou?

– Sereias – ele disse com simplicidade. – São chamadas sereias. E não, eu não as criei. Elas foram amaldiçoadas por um mago depois de terem matado um homem que dormia com as três em segredo. O mago era irmão desse homem. Ele as puniu, baniu-as do mundo humano – transformou-as nos monstros que eram.

Mas eu não matei ninguém! – retruquei, indignada com a injustiça de tudo aquilo. – Eu só queria uma porcaria de poção!

– Você foi estúpida e maldosa, Agnes. Achei que deveria receber uma punição à altura dos seus amados peixes...

– AAAAaaahh! – Gritei e chutei uma prateleira próxima. Ao ver alguns frascos espatifarem no chão, senti certo prazer. Então percebi o que ele estava dizendo. Ele afirmava que eu estava sim me tornando um peixe... sereia... e não ia fazer nada a respeito. Olhei-o desolada, na minha última tentativa patética de obter alguma piedade. – Por favor... por favor, me dê uma cura para isso.

– Não posso ajudá-la, Agnes – ele disse com superioridade, afastando-se do balcão como se não tivesse mais interesse algum naquela conversa.

Abaixei a cabeça, assustada e derrotada.

– Quantos dias tenho até a transformação se completar?

– Alguns. Fugir da água não vai adiantar. Ela vai chamá-la.

Cansada de ouvir tudo aquilo, simplesmente impossibilitada de continuar ali, saí correndo porta afora, a mão na boca abafando o choro que se iniciou de repente.

Continua...

Nota da Autora: Muito obrigada por ler, e não se esqueça de adicionar à sua biblioteca! Se gostou, não deixe de escrever um comentário e apertar a estrelinha no topo para dar suporte à história e sua autora. Sinta-se livre também para divulgar a seus amigos e especular...

O Lado Escuro do MarOnde histórias criam vida. Descubra agora