Parte XVI

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Mudei-me para a casa de Wes de vez no dia seguinte à minha "irresponsável aventura" no mar. Ele não podia mais tolerar que eu vivesse naquele "muquifo", em suas próprias palavras, nem que eu ficasse fora de sua vista, num lugar perigoso daquele, durante a noite. Então fiz minhas malas – o que não era muito, já que quase nada dava para aproveitar e Wes já tinha um guarda-roupa recheado de coisas novas para mim – e parti na carruagem do barão. Wes era o barão agora.

Fui percebendo cada vez mais como ele parecia adequado para cumprir as funções do pai, seja lá quais funções tivesse um barão. Eu não me importava. Só o que sabia era o que via – o modo como ele ordenava os criados, o tempo gasto em seu escritório trabalhando, as ocasiões em que ficava socializando com comerciantes e pessoas da alta, as idas a lojas e demais estabelecimentos, dentre outras atividades que eu tinha que acompanhar.

Os jantares passaram a ser não apenas para nós dois, mas sim, em quase todas as noites desde então, para vários outros membros da alta classe. Eram momentos chatos em que eu me comportava com delicadeza e praticamente fingia ser muda, e Wes falava e falava e eu não me importava com uma palavra sequer do que aquelas pessoas estavam dizendo.

Eu era a noiva, a dama de companhia, a sombra dele. Uma coisinha bonita que se carregava para todo o lado para que os outros pudessem elogiar. A boneca que ele gostava de vestir e ver deslumbrante, e que apreciava tocar e beijar. Só não tinha ido mais longe, nas horas antes de deitarmos para dormir na mesma cama, porque o casamento ainda não havia sido feito, e Wes respeitava as tradições.

Todo dia eu respirava fundo antes de dormir, e me perguntava por quanto tempo eu seria capaz de aguentar aquilo, tanto emocionalmente quanto fisicamente. Eu tinha certeza de que logo a ânsia por procurar o oceano voltaria, mas eu não podia deixá-la me vencer. Mesmo que eu tivesse que me amarrar, mesmo que tivesse que pedir para Wes me acorrentar a ele. Ele era minha única âncora para permanecer seca, em terra. Humana.

Eu não tinha qualquer vínculo sentimental com Wes, percebi, nem mesmo gratidão, mas dizia a mim mesma em todas as manhãs que preferia aquilo a uma eternidade condenada no mar, e tentava me convencer disso, embora minha vida já estivesse fadada por uma maldição que joguei em mim mesma e eu não possuísse qualquer liberdade de ser quem gostaria.

Em uma noite aflitiva, em que novamente era difícil respirar, engoli dois copos de água e levantei com raiva. O casamento era dali a três dias. Olhei meu reflexo doente no espelho, os roncos de Wes deixando claro que ele estava em sono profundo, e agachei-me para pegar embaixo da cama duas cordas que eu havia escondido ali.

Fazendo o mínimo de barulho, joguei a primeira no terraço, depois amarrei uma das extremidades da segunda em um gancho na parede perto da janela, que estava aberta por eu ter alegado estar quente demais lá dentro, antes de dormirmos, e deixei o resto da extensão dela cair lá embaixo. Estávamos no segundo andar, não era tão alto assim, eu vinha examinando a arquitetura por dias, cada tijolo e superfície pisável.

Então comecei a descer. Foi mais difícil do que pensei, fazer aquilo em silêncio, mas me saí bem, após toda a tática que havia construído em minha cabeça para a escalada. Cheguei lá embaixo aliviada e vitoriosa, recolhi a corda arremessada e corri confiante para longe dos terrenos do barão.

***

Contemplei o rosto abaixo do meu, perguntando-me quando ele finalmente acordaria e perceberia que tinha uma pessoa empoleirada em sua cama o ameaçando com uma faca. Aproximei o objeto da garganta dele e a frieza da lâmina deve ter finalmente o pinicado, pois abriu os olhos num susto, emitindo um suspiro alto de terror.

– Você dorme como uma princesa, Salizar – declarei, não aliviando nem um centímetro. Ele pareceu se situar no tempo e no espaço, porém não ficou mais assustado, como eu esperava. Estava um pouco tenso, mas não parecia ter medo.

– Como invadiu, Agnes?

– Você é pateticamente descuidado com a segurança da sua casa, para um encantador da sua classe – zombei.

– Não guardo nada de valor aqui – ele afirmou com rudeza. – Além do mais, um alarme irá soar se você usar qualquer tipo de arma para me machucar.

Ergui as sobrancelhas para o uso dele de magia na própria pele, talvez uma magia de sangue, mas eu não me importava.

– E assim que os justiceiros vierem eu já estarei longe – respondi. – Tudo o que quero agora são respostas, bruxo. – Acariciei o pescoço dele com a faca. – Ou vou ter que usar essa arma para de fato te fazer algum mal.

– Se são respostas o que você quer, terá uma agora. Mate-me e você completará sua transformação.

– Está dizendo isso para proteger a si mesmo – retruquei com agressividade.

– Não, estou falando a verdade.

– Quero que me diga onde consigo poções que anulem tanto a poção do amor quanto a minha transformação – ignorei o comentário dele.

– Você não vai conseguir essas poções, porque elas não existem!

– Me diga quanto quer! Posso lhe dar quanto ouro você quiser!

Ele sorriu insano.

– Não se trata do ouro, não vê? Não é assim que vai resolver seus problemas, ingênua Agnes – falou o Encantador, destemido e, como sempre, superior, mesmo sendo eu a pessoa segurando a faca.  

O Lado Escuro do MarOnde histórias criam vida. Descubra agora