Capítulo 9 – Lavanda
"Desconfiança"
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Sua voz faz todos os pelos de meu corpo se eriçarem, algo nele me incomoda. O vento farfalha as folhas e a grama, bem como meus pelos e os pelos do lobo rendido abaixo de mim. Virado com as patas para cima, sua pata dianteira direita empurra meu pescoço, numa tentativa de me fazer soltar sua garganta de meus dentes.
Não afrouxo a mordida, não aperto o bastante para matá-lo e, pelo visto, nem o impeço de falar. As mordidas e arranhões que me dera latejam, acredito que os ferimentos que deixei nele também doem. O sangue que escorre de seu pescoço em minha mandíbula é saboroso para minhas papilas gustativas caninas, me sinto impelida a cravar meus dentes e sentir ainda mais sangue quente em minha língua, mas não o faço.
— Deve estar se perguntando como a conheço. — diz ofegante. Na verdade não, não tenho a mínima curiosidade nisso. — Você viaja mais no tempo que deveria, seu nome corre entre as eras assim como você. E vendo você aqui, acredito que o meu plano de manter meu mestre a salvo deu certo.
— Por quais motivos salvaria um homem daquele? — solto seu pescoço, de repente seu sangue tornara-se amargo.
Ele se levanta e chacoalha-se, deitando de barriga para baixo com as pernas dianteiras esticadas, lambendo seus ferimentos.
— Por qual motivo protege aquele homem? — refaço a pergunta.
— Tenho os meus motivos e nenhum deles é contá-los a você. — fala entre lambidas.
— Sinto cheiro de magia em você. Por que proteger alguém que mata aqueles que sentem a magia? — indago mais uma vez.
— Aqui está cheio dessa "magia". — cospe a palavra como se a mesma queimasse sua língua. — O cheiro não vem de mim e sim do lugar.
Sento-me levantando o focinho para o céu noturno, abaixando as orelhas e farejo o ar. Uma época totalmente diferente da que estou no futuro. Aqui o cheiro da magia está por todos os lados, uma ventania que parece me favorecer traz ainda mais odores diferentes, o cheiro da mata, de folhas secas, cascas de árvores e humidade, seguidos de cheiros de um vilarejo, de fogo, fumaça e cerveja, mulheres, crianças, homens e animais, o fedor de fezes humanas e animais mortos.
— Você é um lobo falante. — abaixo a cabeça e o encaro. Em forma de lobo, minha visão é diferente, as cores são menos nítidas e limitadas.
— Você também é um lobo falante, só está fazendo papel de um animal e conversando com outro. É o normal. — senta-se para lamber outros lugares.
— Animais não falam ou pensam como a gente. Cada animal tem sua forma de se expressar. Cães e lobos reconhecemos o que querem dizer através do tom de voz, do som do latido e da linguagem corporal. Não usam de palavras, como eu e você. — com isso devo cortar todos seus argumentos. — Você exala magia, seus pais com certeza manipulavam a magia. Mas você não é como eu que pode se transformar em lobo por conta da família.
— Estou preso nessa forma há quase seis anos. — suspira.
— E por isso ataca as bruxas? Tem raiva de quem o prendeu nessa forma? — um ferimento na pata esquerda lateja e me incomoda. Levo a pata a boca para lambê-la.
— Não! — grita nervoso, assustando-me. — Desculpe, não queria gritar. — pigarreia. — Não, não tenho raiva de quem me deixou assim. A culpa de estar assim é minha.
— Então qual o motivo de ajudar aquele homem? — deixo a pata descer ao chão.
— Meio que é uma ajuda mútua. Ele me ajudou quando mais precisava e agora eu o ajudo. Não sei se isso tem a ver com o fato de só estar seguindo um instinto canino, ou se é por mim mesmo, por meu lado humano. Como eu disse antes, de alguma forma senti como seria o fim dele e planejei protegê-lo o resto de minha vida. Mas sei sobre você, você é muito famosa entre nós que conhecemos a magia.
— E agora você admite que conhece a magia? — ele se assusta com minha pergunta, abaixa a cabeça pensativo.
— Mas não pense que faço uso da magia. Apenas sei que ela existe, aprendi da pior maneira. — não levanta a cabeça para falar.
— E por ter aprendido "da pior maneira", ajuda alguém a matar inocentes?
— Não são inocentes! — grita, seu grito saiu como um latido. Ele se levanta e rosna para mim. — Magia não é algo que deva ser usado.
— Sua família deve ter usado da magia e devem sentir vergonha de você por dizer isso. — não me movo, ignoro suas ameaças. — A magia está aí para ser vista, para ser usada e sentida. Na época em que vivo, poucos sabem dela e a usam, por isso está desaparecendo aos poucos. E aqui, nessa época, é tão temida que quem faz seu uso é morto e até mesmo quem nem sabe o que é, é morto sob suspeita. E não vou aceitar que alguém que seja cruel com inocentes tenha um fim calmo. — levanto-me e lhe dou as costas. — Não tenho mais motivos para continuar a conversar com você. — olho para trás encarando-o. — Ninguém me pediu para vir, isso foi um capricho meu e irei realizar meu plano, quer você queira ou não. Mudar algo na história não é algo que admiro. — saio andando devagar, pata por pata, sei que ele vai me chamar. Sinto um leve arrependimento dentro dele.
— Espere! — o lobo branco corre e para à minha frente. — Espere.
Sento-me novamente, olhando-o, esperando pacientemente que ele fale.
— Quero algo de você. — em nenhum momento ele me olha. — Quero que troque de lugar comigo, por um dia.
— E posso saber o motivo disso?
— Quero ver se ele realmente se importa comigo, como eu me importo com ele. Sei que na visão dele sou um cachorro grande, apenas. Mas...uma vez por mês eu consigo voltar a minha forma humana. Em uma dessas vezes, ele voltou bêbado para casa e me viu e...me acolheu. Não fez nada, não me denunciou ou tentou me matar. Toda lua cheia me torno humano e bato a sua porta. Me oferece comida e uma cama e conversamos sobre coisas banais, como se fôssemos grandes amigos.
— Mas ele sabe que era você?
— Não sei...
— Então voltamos a estaca zero. Se ele não sabia que o rapaz que estava em sua casa era seu animal de estimação, claro que não faria nada. Só pensou que era um jovem faminto que precisava de um lugar para ficar. E ele não me parece o tipo de homem que presta atenção em um cachorro. Te garanto que se trocarmos de lugar, ele nem vai reparar que sou uma fêmea e não você.
— Se ele não souber mesmo nos diferenciar, não ficarei no seu caminho. Pode matá-lo como era para ser no seu futuro e ainda terá minha ajuda.
— Pois bem. Mas sabe como trabalho, não sabe? Se já ouviu tantos rumores sobre mim.
— Você pede uma flor que simbolize o pedido. Espere aqui. — Ele dá um impulso para frente e então para. — Vou buscar a flor. — some no meio das árvores.
"Não são inocentes!", essas palavras ressoam em minha mente. Claro que não acho que minha mãe seja inocente, afinal ela fez um pacto com um demônio que acabou com as fontes de alimentos e água do vilarejo em que vivíamos, mas não merecia o fim que teve. E é claro que nem todas as bruxas são boas. Mas o problema é que a maioria que é morta aqui não sabe mais que fazer pequenos feitiços com ervas para potencializar as propriedades das mesmas, conseguindo resultados mais rápidos em pequenas doenças que afligem o povo dessa época. Nada muito elaborado. As grandes bruxas conseguem se esconder e escapar das garras desses homens "da fé" que nada mais são que covardes.
Uma leve brisa mexe meus pelos, farejo o ar novamente. Faz muito tempo que não sinto a magia antiga, não vejo tantas estrelas no céu e muito menos os seres que se escondem ao meu redor na floresta.
Ouço patas amassando a grama e o cheiro do lobo alcança meu focinho. Preciso aprender a perguntar o nome das pessoas assim que as conheço, dá menos trabalho. Além do cheiro do animal, capto um cheiro familiar. Se estivesse na forma humana estaria dando um leve sorriso.
O lobo surge pulando de trás de uma árvore de tronco branco, percebo o tronco se agitar.
— Aqui. — diz ao se aproximar, cuspindo as flores no chão. — Lavanda.
— Pode me lembrar o significado da lavanda? — pergunto encarando as flores roxas jogadas na grama.
— Desconfiança.
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A Bruxa das Flores
RomanceAlma realiza desejos que consistem em mudar arrependimentos des pessoas em troca de flores. Cada caso leva a clarear o que a trouxe até ali. Uma história sobre flores e seus significados e desejos realizados ou não.