Capitulo 26.

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Frank Sellers.
Mesmo no escuro, deitada em minha cama, encarando as sombras projetadas no teto pelas fracas luzes vindas da janela, aquelas eram as únicas palavras que eu via. Mesmo ao amanhecer do dia seguinte, tão esvaziado de qualquer outro sentimento a não ser ansiedade quanto as horas que o precederam, aquelas eram as únicas palavras que reverberavam em minha mente. Mesmo durante o trajeto de trem até a estação mais próxima à casa de Elliot, onde nos encontramos para seguir viagem por mais meia hora de carro como eu instruíra ao telefone na noite anterior, aquelas eram as únicas palavras que me orientavam.
Frank Sellers... Poderia eu estar enganada?
Não... Mas com toda a certeza do mundo, eu gostaria de estar.
– Você não vai mesmo me contar o que está acontecendo?
A voz de Elliot, transmitindo um misto de irritação e preocupação, rompeu o silêncio que já durava vinte minutos dentro do veículo. Apertei os papéis em minhas mãos, os mesmos que apertei com incredulidade há cerca de doze horas, e que eram a causa de nosso trajeto misterioso.
– Logo você saberá – foi o que pude dizer, e o que se seguiu foi mais uma reafirmação para mim mesma do que uma continuação de minha resposta – E eu também.
Elliot não teve coragem de insistir. Agradeci mentalmente sua desistência. Meus nervos já estavam em frangalhos com todo aquele suspense; a última coisa de que precisava agora era dar explicações que não tinha. Precisava de alguém que confiasse em mim, pelo menos só até que minha dúvida fosse sanada, e então ele obteria todos os esclarecimentos que quisesse.
– Uma coisa eu posso adiantar – suspirei, antes de voltar a me calar, na tentativa inútil de parar de sentir, de parar de existir – Esta é a minha última esperança.
Ele lançou um olhar ainda mais receoso do que antes em minha direção, porém manteve sua atitude resignada e apenas continuou dirigindo. Mais vinte minutos se passaram, novamente imersos em silêncio, até que Elliot estacionou o carro em frente ao nosso destino. Respirei fundo ao observar a fachada do prédio, e por um momento o desejo de desistir e voltar para casa, fingir que nada acontecera, foi tão forte que eu quase implorei para que ele nos levasse embora dali. Meus lábios chegaram a articular a primeira palavra da frase, embora nenhum som tenha saído, mas outras duas, muito mais pesadas, ancoraram-me diante do edifício.
Frank Sellers.
– Vamos? – Elliot indagou, ao perceber que eu estava presa em meus próprios pensamentos, temerosa demais para dar o primeiro passo, que sua curiosidade o motivou a dar. Após uma breve hesitação, durante a qual reuni todas as evidências, concretas ou abstratas, de que estava tomando a decisão certa, enfim abri a porta do carro.
– Vamos.
Cada passo dado até a entrada do prédio precisou de reafirmação. O caminho mais fácil insistia em agarrar-me as pernas, fazê-las pesarem o triplo do normal, esforçando-se para me afastar do caminho mais difícil, do caminho que eu acreditava ser verdadeiro. Relutante, segui em frente, disposta a ir até o fim para revelar o segredo tão cuidadosamente encoberto há anos. Se não houvesse segredo a descobrir, menos mal; seria um baque difícil de aguentar, saber que minha intuição falhara tão significativamente, mas eu me recuperaria. Talvez Niall tivesse razão... Talvez Harry tivesse conseguido entrar em minha cabeça, manipular minha visão dos fatos... Tudo ficaria bem se eu estivesse errada.
Mas se eu estivesse certa... Se eu tivesse razão, tudo viraria de cabeça para baixo. Eu também sobreviveria, com alguns arranhões e hematomas. O pior de tudo, naquela que já era a pior das hipóteses, seria o estado em que as outras partes envolvidas se encontrariam quando soubessem.
Eu estava prestes a cortar o fio vermelho. Bastaria saber se ele desativaria a bomba, ou faria tudo ir pelos ares de uma vez por todas.
Chegamos à recepção, e com a voz um pouco mais firme do que antes, fruto de minha persistência e também curiosidade, ainda que mórbida, perguntei à atendente onde poderia encontrar a pessoa que procurava. Ela me indicou o andar e a sala, e ao me dirigir ao elevador, percebi no rosto de Elliot uma confusão ainda maior.
– Por que você está procurando... – ele começou, mas desistiu de continuar ao ver minha mão erguida entre nós, logo depois de apertar o botão na parede.
– Logo você saberá – repeti, retraindo a mão ao notá-la levemente trêmula. Pela terceira vez, ele não insistiu, porém seus olhos não abandonaram meu rosto durante todo o tempo de espera pelo elevador, nem durante nosso trajeto ascendente.
Chegando ao andar desejado, caminhei com Elliot em meu encalço pelo corredor branco em busca do número apontado pela recepcionista, ignorando as pessoas espalhadas pelo caminho, sentadas ou de pé, aguardando atendimento. Toda a minha determinação encontrou mais uma vez um obstáculo ao reconhecer os números que procurava estampados numa placa ao lado da porta correspondente. Meus pés se agarraram ao chão, numa última e desesperada súplica para que eu não seguisse adiante e consequentemente não pudesse mais voltar atrás, já que o que estava em jogo mudaria tudo.
Frank Sellers. Frank Sellers. Frank Sellers.
As pontas frias de meus dedos encontraram a manga da jaqueta de Elliot inconscientemente. Para minha surpresa, ele a substituiu por sua própria mão, percebendo minha necessidade de apoio. Nossos olhos se encontraram por um instante, no qual ele assentiu uma vez, encorajando-me a continuar. Assenti de volta, respirando fundo para evocar toda a minha coragem e determinação.
Frank Sellers.
Minha mão se afastou da dele, e dirigiu-se à maçaneta. Assim que a porta rangeu, indicando sua abertura, o homem que organizava a papelada em sua mesa olhou em nossa direção, e suas sobrancelhas se ergueram em surpresa.
– Filha?
Meu coração disparou dentro do peito, desenfreado, despejando adrenalina em minha corrente sanguínea a cada batimento frenético. Não existia outra possibilidade a não ser ir em frente. Elliot colocou uma mão em minhas costas discretamente, lembrando-me de que estava ali, de que eu não estava sozinha, de que eu estava fazendo a coisa certa. Um sorriso nervoso surgiu em meu rosto, e eu enfim pude responder.
– Oi, pai.
Alguns segundos de estranhamento se seguiram, logo superados por ele, que se levantou da cadeira e veio até mim. Elliot praticamente me empurrou sala adentro, fechando a porta atrás de nós para que os pacientes não partilhassem do encontro.
– Entrem, entrem – disse, abraçando-me sem cerimônias, ato que tentei retribuir da melhor forma possível – O que você está fazendo aqui, querida? Ainda mais assim, sem avisar?
Papai demorou a me soltar, e quando o fez, seus olhos logo pularam para meu acompanhante, como se ainda não o tivesse visto. De imediato, suas feições mudaram da água para o vinho; o sorriso que surgiu em seu rosto deu lugar a uma linha reta, e a alegria em seu olhar virou desconfiança.
– E quem é esse?
Elliot devolveu a encarada de meu pai com uma expressão constrangida que teria sido cômica, se a situação não fosse tão trágica. Desfiz o mal entendido o mais rápido possível.
– Esse é Elliot, meu amigo. Ele só veio me acompanhar.
Ao ouvir a palavra mágica ("amigo"), papai voltou a sorrir, cumprimentando-o com um aperto de mão e alguns tapinhas no ombro.
– Como posso ajudá-los? – ele perguntou, caminhando de volta à cadeira e sentando-se – Ou melhor, ajudá-la, já que ele "só veio te acompanhar"?
Com um gesto, ele indicou as duas cadeiras vazias do outro lado da mesa, que logo ocupamos. Os olhares dos dois caíram sobre mim quando o silêncio se instaurou no consultório. Ainda com os resultados dos exames nas mãos, comecei a explicar da melhor maneira que pude.
– Você se lembra de quando te liguei na semana passada?
Papai confirmou com a cabeça.
– Bem... Eu te pedi para acompanhar uma análise de DNA. Para se certificar de que ninguém alteraria o resultado. Certo?
A resposta positiva demorou uma fração de segundo a mais do que o esperado para vir. Elliot se remexeu desconfortavelmente em seu assento, já prevendo a dimensão do estrago que aquela conversa inocente poderia tomar.
– Certo.
Um suspiro tenso escapou de meus pulmões. Agora viria a parte difícil.
– Meu amigo Elliot é tio do menino cuja amostra foi analisada, junto com as da mãe e do suposto pai – falei, indicando-o com um aceno de cabeça – Você pode imaginar como toda a situação é bastante estressante para todos os envolvidos.
– Claro – papai concordou, arriscando um breve olhar para Elliot antes de voltar a focar em mim – Lamento muito que tamanhas medidas devam ser tomadas em alguns casos para o reconhecimento paterno.
Engoli em seco diante de sua postura profissional. Por um segundo, imaginei ter visto um sinal de fraqueza em sua atitude... Talvez eu estivesse tão desesperada para encontrar uma resposta que se adequasse ao meu modo de pensar a ponto de distorcer os fatos. De qualquer maneira, prossegui, encurralada, embora um pensamento ainda persistisse em meio à descrença.
Frank Sellers.
– Realmente... Ainda mais quando um fator bastante curioso entra na equação.
Ambos franziram a testa, aguardando o resto de minha fala, que não tardou a vir.
– Um outro exame de DNA já tinha sido feito há alguns anos, quando o bebê nasceu – expandi, mostrando os papéis em minha mão e desdobrando-os sobre a mesa entre nós – Dessa vez, com outro homem apontado como pai. Os resultados foram diferentes, o que não é necessariamente uma surpresa... No entanto, o nome do médico responsável pela análise é o mesmo.
Observei com atenção à reação de meu pai durante a pequena pausa que se seguiu. Seus olhos despencaram de meu rosto para os papéis à minha frente, e neles se fixaram, enigmáticos, ilegíveis. Dei voz às palavras que assombravam minha mente, fazendo questão de lê-las diretamente da fonte para ter certeza de que não eram produto de minha imaginação.
– Frank Sellers.
Papai não se manifestou. Nem sequer uma palavra, nem ao menos um movimento. A cada segundo a mais de silêncio e inércia, a hipótese que eu construíra durante a noite anterior ganhava força, expandia-se em meu peito, forçando as palavras a saírem, agora quase num fluxo ininterrupto, sem o peso esmagador da insegurança que as atrofiava até então.
– Pode não parecer muito relevante de início, mas se considerarmos que as clínicas onde os exames foram feitos são diferentes, algo já começa a ficar estranho, embora não seja impossível. O que mais me intriga, porém, é algo que não pode ser mera coincidência.
Percebendo o rumo da conversa, ele rapidamente tentou argumentar – em vão. As palavras já estavam na ponta de minha língua, e eu não seria capaz de contê-las mesmo que quisesse.
– (S/N), eu não sei do qu...
– Eu conheci Frank Sellers quando era pequena.
Elliot arregalou os olhos, movendo a cabeça de um lado a outro para acompanhar a discussão como se assistisse a uma partida de pingue-pongue.
– Ele era seu amigo – adicionei, repassando as memórias nítidas, ainda que esparsas, do homem como fizera repetidas vezes desde o primeiro momento em que vi seu nome escrito nos dois exames – Trabalhava no mesmo hospital que você quando ainda morava conosco em Londres.
– O que você está dizendo, minha filha?
– Não adianta mentir agora. Eu sei quem ele era. Você sabe que eu sei. Sabe que eu já tinha idade suficiente para me lembrar dele. Você só não contava com a minha capacidade de lembrar o nome dele, muito menos com a chance de que eu tropeçasse por acidente em alguma menção impossível dele.
Ele se recusava a ceder, por mais que sua expressão denunciasse, sob a frágil camada de contenção, um pânico crescente. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que estava tocando justamente a ferida, e agora que recebera ao menos um vestígio de confirmação, não desistiria até revelar toda a verdade.
– Chega! Não admito que você venha até meu local de trabalho e me desrespeite dessa forma!
– Pai, não se faça de desentendido – suspirei, deixando a exaltação de lado, porém não a veemência, e adotando um tom franco ao me levantar da cadeira – Nós dois sabemos que Frank Sellers está morto.
Elliot não pôde evitar demonstrar seu choque com a revelação, cobrindo a boca com uma mão. A convicção de meu pai foi consideravelmente abalada por minha constatação. Como eu dissera antes, ele não contava com minha lembrança do ex-companheiro de trabalho. Não demonstrei um mísero sinal de incerteza ao sustentar seu olhar, e voltei a falar quando percebi que ele não se manifestaria tão cedo. Agitada demais depois de tantas horas de tensão para ficar parada, passei a andar de um lado para o outro da sala enquanto detalhava os registros que sobreviveram ao tempo em meu cérebro.
– O dr. Sellers morreu de trombose coronária. Eu me lembro perfeitamente de te ouvir conversar com mamãe a respeito. Lembro que investiguei o que isso significava na Internet logo depois, assim como também procurei o nome dele ontem à noite e encontrei notícias a respeito de seu falecimento. Eu tinha dez anos... Eu me lembro, pai. Eu sei exatamente do que estou falando, e você também.
Mais silêncio. Papai agora não ousava me encarar; fitava os papéis sobre a mesa, como se desejasse incendiá-los com o poder da mente e assim reverter a situação. Seu derrotismo só serviu para inflamar ainda mais meu discurso.
– Agora, o que eu realmente quero saber é: como pode um médico morto há quase nove anos ter realizado não apenas um, mas dois exames de DNA, o primeiro há seis anos, e o segundo há uma semana? Um pouco difícil de compreender, para dizer o mínimo, não?
– Você... Você passou dos limites – ele gaguejou, balançando a cabeça em reprovação. Soltei um risinho debochado, reaproximando-me da mesa e apoiando as duas mãos sobre ela.
– Se alguém aqui passou dos limites, definitivamente não fui eu. Tudo o que quero é uma resposta para um garoto que tem direito de saber quem é seu pai. Tudo o que quero é a verdade, que, segundo os seus ensinamentos, muito bem guardados em minha memória, é o principal objetivo da ciência. Onde está ela agora, pai? Porque nesses exames é que não estão.
Empurrei os papéis em sua direção, cansada de sua postura dissimulada. Toda a ansiedade acumulada desde a noite anterior agora corria livremente por minhas veias, impedindo-me de agir de forma contida. Se ele não queria abrir o jogo, eu o faria mudar de ideia sem pensar duas vezes. Diante de seu silêncio vergonhoso, dei-lhe um ultimato.
– Você vai falar, ou teremos que exumar os restos mortais do dr. Sellers para perguntar o que ele sabe a respeito disso?
– Está bem, está bem, acalme-se! – ele suspirou enfim, tirando os óculos e esfregando os olhos em sinal de cansaço – É melhor eu falar de uma vez antes que você faça uma besteira.
– Por favor, sou toda ouvidos – concordei, retomando meu lugar na cadeira e olhando-o com atenção.
Alguns segundos de preparação precederam suas palavras.
– Mas com uma condição: isso não pode sair daqui.
Cerrei os olhos, verdadeiramente confusa, e não pude evitar rir mais uma vez, agora de incredulidade.
– Você não entendeu o que eu disse? Um menino de seis anos não sabe quem é o próprio pai porque alguém está acobertando a verdade. Não posso prometer isso. Essa é a sua chance de se redimir por saber do esquema e ajudar a mantê-lo em segredo.
– Eu posso ir preso por isso, (S/N)! – ele murmurou, entre dentes. Dei de ombros, com toda a sinceridade do mundo.
– Se foi burro o bastante para não seguir seu próprio conselho sobre ética profissional, não é uma criança quem deve pagar por seu erro.
Meu pai bufou, recostando-se na cadeira. Elliot apenas assistia a tudo, boquiaberto, chocado e intimidado demais pela atmosfera pessoal da conversa para se intrometer. Apenas cruzei os braços, aguardando uma resolução para seu conflito interno.
– Se eu não contar, o que você vai fazer?
– Casualmente informar ao Conselho Geral de Medicina que dois exames de DNA foram falsificados por um médico, e aproveitar para casualmente mencionar que você era amigo do médico cujo nome foi usado na manipulação dos resultados.
Com um sorrisinho cínico, esperei que ele digerisse o peso de minha resposta. Após engolir em seco, ele voltou a me questionar, apelando para a sentimentalidade.
– Você teria coragem de entregar seu próprio pai?
Ergui uma sobrancelha, forçando-me a manter minha postura desafiadora apesar da dor que aquela possibilidade trazia.
– Claro, assim como você teve coragem de se submeter a um esquema vergonhoso desses.
Meu esforço se mostrou eficiente, a julgar pela súbita seriedade em seu rosto.
– E se eu contar?
– Garanto que as autoridades nunca saberão disso... Mas você terá que confessar tudo para a família do garoto, ou nada feito.

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