Capítulo 02: Leyla

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A chaleira zumbindo às 06:00hrs era o anúncio de que o dia havia começado para Leyla Garcia.

A jovem excepcionalmente brilhante deixava seus dias se esvaírem na casa da Avó materna, dona Eunice, após trancar o curso de Direito, na Universidade Federal do Oeste Baiano.

Leyla sentia-se a pior pessoa do mundo por uma sequência de coisas, mas, sem dúvidas, ter "desistido" da Universidade era, de tudo, o que mais pesava pra ela.

Ao contrário do resto do mundo - incluindo ela própria - a avó a acolhera de braços abertos de volta ao lar de onde tinha saído, em Pedra Dourada, para uma cidade maior. Dona Eunice era uma simpática senhora idosa, de cabelos tingidos de castanho-escuro e óculos de armação grossa. Ela era uma Técnica em Enfermagem aposentada e, como se já não bastasse ter passado longos anos cuidando de seus pacientes, agora, se dedicava a cuidar da neta depressiva.

Leyla se lembra, desde sempre, que dona Eunice sempre foi muito mais que sua criadora - ela não conheceu o pai e a mãe morreu logo após o parto, uma tragédia -, dona Eunice era uma entusiasta!

"Você será uma grande cientista, meu amor!" dizia a avó quando Leyla era ainda criança.

"Não quero ser cientista, quero ser advogada!" a pequena Leyla logo rebatia.

Por si só, Leyla Garcia tinha acabado com seu futuro.

Por sua vez, dona Eunice não a via daquele jeito.

Para a aposentada, a neta só era um pouco pessimista. Leyla vivia de "cara amarrada" e, pelo que a senhorinha podia notar, não era de ter muitos amigos.

Para ser honesta, dona Eunice mal conhecia alguém da idade de Leyla. Nada de amigas em casa ou festas durante o fim de semana. A neta sempre fizera o oposto de tudo isso: só estudava.

Mas, para pessoas com o passado igual ao de Leyla, o futuro sempre é muito incerto, pairando sobre a linha tênue do sucesso e do fracasso.

Dona Eunice odiava ter que admitir a si mesma que, de um jeito ou de outro, Leyla nasceu para fracassar.

- Bom dia, vó!

A mesa já estava posta, enquanto Eunice coava o café em cima do balcão da cozinha.

Leyla estava parada na porta da entrada, ainda usava um pijama azul com nuvens branquinhas, uma estampa inspirada na sequência de filmes Toy Story. Apesar dos 26 anos, da cara amarrada e do humor instável, a ex-estudante de Direito era bem adepta aos classicos infantis.

- Bom dia, meu amor! - Eunice cumprimenta, enquanto termina de coar o café - Acordou cedo. Tem certeza de que descansou bem?

- O quê?

A avó colocou a garrafa de café sobre a mesa, e, enquanto secava as mãos num pano de prato, continuou:

- Eu me leventei de madrugada pra tomar um copo d'água e vi que você ainda estava acordada mexendo no celular. Deu pra ver pela fresta na porta do seu quarto.

Leyla ficou calada, dirigindo-se até a mesa.

- Está tendo insônia de novo? - questionou a avó - Sabe que, se estiver, podemos consultar aquele médico de novo.

- Não, vó! - ela tinha tentado não ser rude, apesar de não ter certeza se tinha conseguido - Eu estou bem. Eu dormi tarde porque estava assistindo a um filme.

- Claro! - a avó sim, tinha sido muito doce, enquanto fingia ter acreditado naquela história.

As duas sentaram-se à mesa para o café da manhã.

O resto do dia, com certeza, seria a mesma coisa: A avó iria preparar o almoço, arrumar a casa, talvez fosse até o mercado para comprar alguns condimentos, depois, iria para os exercícios leves na praça da cidade e, no fim do dia, iria se dedicar à leitura de algum livro de poemas dos ans 1950, enquanto Leyla iria passar o dia todo deitada na cama ouvindo música ou vendo filme.

Enquanto o café meio amargo e quente descia pela garganta, ouviram o bater à porta.

- Visita a essa hora?! - Leyla questionou, o cenho franzido em direção à avó.

- Eu não convidei ninguém - sorrira a senhora, enquanto se levantava para ir até a porta.

Menos de um minuto depois, dona Eunice estava de volta à cozinha e, agora, estava acompanhada por uma mulher de corpo escultural e cabelos longos, presos num rabo-de-cavalo. O rosto da mulher estava um tanto quanto pálido, ela parecia um fantasma.

- Priscila?! - Leyla mal podia acreditar que sua ex-melhor amiga de infância estava ali em pé bem na sua frente.

* * *

Priscila Assis e Leyla Garcia estudaram toda a vida juntas. Desde a pré-escola, até o ensino médio, quando Priscila afundou-se num namoro sem futuro e Leyla, por sua vez, foi cursar Direito numa cidade maior. Com o passar de - não muito tempo - as duas perderam o contato. no máximo uma ou outra curtida nas redes sociais.

Alguns poucos anos depois e as duas estavam de volta frente a frente. Leyla estressada e deprimida e, Priscila, igualmente estressada e deprimida.

Era muito difícil até para elas mesmas aceitarem que, apesar dos pesares, estavam no mesmo barco.

- De todo mundo que existe - Leyla dizia - A última pessoa que eu esperava vir até a minha casa às seis da manhã era você.

Para terem um pouco mais de privacidade, Leyla tinha levado a moça para o próprio quarto - dessa vez, certificando-se de que a porta estava devidamente trancada.

- Eu sei... Faz muito tempo!

- Muito...

O olhar de Priscila desviou-se do de Leyla, ela parecia querer desconversar. Observando o quarto, se dera conta de que não era só da aparência que Leyla havia se descuidado: tudo estava uma zona. Livros pelo chão, gavetas abertas no guarda-roupas que explodia poeira e roupa amarrotada por todos os lados. Isso, sem contar os pacotes de salgadinho e biscoito jogados pelo chão.

- A polícia encerrou o caso! - disse Priscila - Eles concluíram que foi um suicídio.

Leyla ficou parada. Ela sabia exatamente sobre o que - sobre quem - Priscila estava falando.

- Isso é ridículo - disse Leyla, firme, apesar de meio desinteressada- A Anelice não se materia.

- Exatamente! - Priscila se aproximou da outra, olhando-a firme nos olhos - Leyla, aquela cena pavorosa de eu e o Adonis encontrando o corpo da Anelice boiando naquele lago há duas semanas não me sai da cabeça. Eu vi muito pouca coisa do corpo dela, mas, ela não se matou, eu tenho certeza disso...

Leyla afastou-se de Priscila, desvencilhando-se das mãos geladas dela.

Embora ela e a morena do rabo-de-cavalo fossem amigas muito próximas durante o colegial, agora, não eram nada além que duas desconhecidas. Leyla não admitia intimidade vinda de deconhecidos.

- Leyla - ela chamou, quase numa súplica - No colégio, nós tínhamos um clubinho, lembra?!

Leyla se recusava a se lembrar, enquanto a outra continuava falando:

- Nós descobrimos quem tinha roubado o São Gonçalo da igreja. Lembra?!

Leyla engoliu um nó da garganta.

- Leyla - agora, Priscila estava olhando firme nos olhos, também marejados, dela - Nós precisamos descobrir o que aconteceu! Você mesma disse: a Anelice não se mataria. De nós três, ela era a melhor.

Dessa vez, as mãos de Priscila estavam mais quentes, mais suaves. Elas tocavam as mãos medrosas de Leyla.

- Nós precisamos descobrir quem matou a Anelice.

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