Capítulo 03: Amelice

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Quando Leyla partiu para a cidade grande pra estudar e Priscila tratou de se enfiar numa depressão perigosa, Amelice resolveu endireitar sua vida.

Não é que elas fossem três super amigas do colegial, mas, as excluídas acabavam virando um time, uma equipe.

Elas tinham suas afinidades, obviamente.

Mas, tinham algumas coisas que tiravam Amelice Ferreira do lado das outras duas no podium das menos queridas da escola e a jogava direto para o primeiro lugar: Amelice era, por assim dizer, conturbada. Difícil de lidar.

Enquanto ainda era menor de idade, Amelice manteve um relacionamento amoroso com um de seus professores, Miguel Maya.

Ele, por diversas vezes, tentou terminar o romance. Ele quis se desvencilhar dela, mas, a garota era uma mestre na arte da sedução. Ela não o deixava, era como se ela conseguisse invadir a mente dele e manipulá-la, tornando-o nada além de um fantoche pra ela.

E não parava por aí: ela fazia questão absoluta de que todo mundo ficasse sabendo do caso dos dois. Era como se aquilo fosse um tipo de aprovação social para ela. Ela se sentia plena, se sentia querida e importante.

Só que os deleites de Amelice Ferreira acabaram com o casamento do professor quase 20 anos mais velha que ela e, como se isso por si só já não bastasse, ainda custou o emprego dele.

Miguel Maya ficou, literalmente, na rua da amargura. Até que, por obra do destino e determinação dele mesmo, montou um mercadinho de esquina de onde conseguiu tirar seu sustento e, aos poucos, esquecer a mancha negra deixada por Amelice em sua vida.

Assim como sua esposa e seu emprego, Miguel Maya também perdeu a amante.
Amelice se limitou a dizer "Não da mais, não tem mais graça" quando ele a procurou pedindo para voltarem um tempo depois que tudo aconteceu.

O perigo era o que a atraía para ele.

Um tempo depois, Amelice se envolveu em uma briga durante uma festa na cidade.
Ela e Iasmin Almeida, uma colega de classe, brigaram feio por conta de um rapaz que ambas estavam ficando, Alberto Júnior.

E a briga realmente foi feia: Iasmin saiu com três dentes quebrados, Amelice ficou sem algumas mechas de cabelo e um galo na cabeça.

As duas foram parar na delegacia. Mais um escândalo para a ficha da garota.

Depois, quando tudo parecia estar sob controle, a mãe de Amelice, Gilmara Ferreira, acabou descobrindo que a filha estava traficando medicamentos de sua farmácia.

O esquema era simples: Amelice roubava os medicamentos - sempre os mais vendidos que, consequentemente, tinha em maior quantidade - e vendia por aí.

A mãe a puniu duramente: uma surra que a deixou com hematomas por todo o corpo, o que acabou a impedindo de sair de casa por quase um mês.

Mas, o tempo passou e, junto com a vida adulta, Amelice Ferreira se reinventou.
Quase ninguém mais se lembrava daquele passado conturbado e, logo após se converter à uma religião evangélica, ela conheceu Gregory Alencar, bonito, carinhoso, cinco anos mais jovem que ela, o filho do pastor, que havia acabado de se mudar para Pedra Dourada, vindo de uma cidade grande, onde tinha passado quase toda a vida até então, morando com uma tia.

A igreja do pai e as responsabilidades da vida de adulto o fizeram voltar.

Amelice e Gregory pareciam, para todos que os conhecessem, terem sido feitos um para o outro.

Ela era linda e dedicada, ele, atencioso e bondoso.
Os planos para o casamento vieram não muitos meses depois. As duas famílias aprovavam e apoiavam.
Para Amelice, aquele era o sinal do recomeço.
Ela tinha aprendido lendo a Bíblia que segundas chances sempre são dadas para aqueles que as merecem. Amelice Ferreira sentia que merecia uma segunda chance e Gregory era o maior símbolo disso.

De casamento marcado, a mulher recebeu uma outra grande notícia: tinha sido aprovada num concurso público. Agora, ela seria Tutora numa creche da cidade.

A vida perfeita para a senhorita - agora - perfeita.

Ainda como sinônimo de agradecimento, Amelice fazia questão de sempre contar seu testemunho na igreja à qual frequentava: ela tinha saído das trevas e ganhado o reino dos céus. Aquilo era, para muitos, inspirador. Era quase como um ex-viciado.
Ela era a imagem da mudança. A imagem da igreja.

Além da tutoria na creche municipal de Pedra Dourada, ela também se dedicava ao seu trabalho na igreja: era tutora de um grupo de crianças e do grupo da mocidade. As crianças, adolescentes e jovens adultos também amavam Amelice Ferreira. Ela sabia passar os Ensinamentos de forma dinâmica, de forma jovial e muito coesa. Era o encanto deles.

Gregory também era exemplar: o futuro pastor da igreja tinha que ser exemplar.
O rapaz tinha se dedicado a vida toda aos estudos na capital e, quando voltara para o interior, não tinha sido diferente.

Ele era calmo e metódico, muitíssimo disciplinado. Como pregavam as regras de sua religião: relações sexuais com Amelice, só depois do casamento.
Aquilo não era um problema para ele e nem pra ela.
Eles estavam plenos e juntos naquilo tudo.

O casal perfeito, a vida perfeita que, agora, estavam quebrados.

Amelice Ferreira estava morta. E, apesar de o inquérito policial ter levado à conclusão de que a jovem perfeita professora tinha cometido suicídio, Priscila não conseguia acreditar naquilo. Muito menos Leyla.

-... É - disse Leyla, ainda de frente para a ex-amigos em seu quarto - Só que não dá pra investigar isso não.
- Por que não?
- Porque, Priscila, as coisas não funcionam assim! A Amelice não é a porra de uma imagem de barro, tá legal?!  E ela não foi roubada! Ela está morta!
- Eu sei! - berrou Priscila - E você não acha que nós devemos isso à ela?
- Você tá louca! - Leyla abriu a porta do quarto, apontando a saída para a outra - Eu não devo nada a ninguém.
- Você deve sim! - Priscila foi até a porta, trancando-a contra a vontade da outra - Ou você se esqueceu do que nós fizemos contra ela enquanto estávamos na escola?!
- Cala a boca!
- Não interessa, Leyla! Você sabe o que fizemos. Isso não vai mudar... Desde que eu encontrei a Amelice morta isso não me sai da cabeça! - ela fez uma pausa - Nós devemos isso a ela! Como um pedido de desculpas...
Leyla estava resistente, mas, algo ali a chamava.
Apesar de todo o fracasso na vida acadêmica, ela tinha suas paixões pela justiça, pelo processo investigativo, por crimes. Aquilo estava em seu sangue, em seu DNA, e, embora a tentativa estranha se Priscila de fazê-la se sentir culpada o suficiente para tentar investigar o que tinha acontecido ter dado errado de forma vergonhosa, ela sentia vontade de fazer aquilo.
Ela estava com o desejo de investigar a morte de Amelice não por culpa ou por justiça... Ela queria provar pra ela mesma que, mesmo com tudo o que tinha acontecido até ali, a velha, boa e competente Leyla Garcia ainda existia.
- Beleza, Priscila! Vamos investigar.

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