I - Desabrochar

421 35 8
                                    

Algo estava errado nas últimas semanas.
Giorno sentia dores de cabeça com muita frequência, somando a sensação de sempre estar com sede, mesmo que estivesse se hidratando apropriadamente todos os dias.
No começo não era preocupante. As dores passavam quando anoitecia e Giorno notava que seus olhos ardiam em dias ensolarados.
Ele concluiu que talvez fosse resultado do estresse constante, afinal, faziam cerca de cinco anos que Giorno assumiu a liderança da Passione. Ter toda essa responsabilidade em suas costas desde os dezesseis anos, era compreensível que acabasse negligenciando um pouco sua saúde.
Seis meses após aquela semana conturbada com o grupo de Buccellati, Fugo voltou para a gangue após uma missão perigosa para eliminar a antiga equipe de narcotráfico de Diavolo, abalado e deprimido pela perda de seus amigos, teve algumas desavenças com Mista nos primeiros dias, mas após um tempo, já voltaram a agir como antes, mesmo que ainda estivessem afetados pelo luto.
Polnareff, apesar de estar preso em uma tartaruga, assumiu o posto de Consigliere do Don. Como era mais velho e mais experiente no assunto dos Stands, ele seria uma peça importante na Passione.
Trish também mantinha contato com Giorno, mesmo com suas turnês constantes ao redor do mundo. Pelo que passaram juntos em apenas uma semana, ela o considerava seu melhor amigo e vice-versa.
E Mista se tornou seu Sottocapo, seu braço direito. Era óbvio que ele assumiria essa posição, devido à sincronia perfeita que tinha com Giorno. Mista parecia sempre saber o que passava em sua cabeça, com aquele jeito descontraído e despreocupado de sempre, que nunca falhava em arrancar um sorriso do Don.
Em um certo dia, Giorno acordou com a enxaqueca mais terrível que as das últimas semanas. Sentia seus lábios secos e rachados, a sede também estava intensa naquela manhã.
Ele olhou o relógio na cabeceira e grunhiu alto ao ver que já passavam de nove da manhã. Tudo bem que ser o chefe de uma organização criminal daria a ele o direito de acordar na hora que quisesse, mas Giorno ainda preferia manter um horário minimamente profissional. O loiro se levantou, espreguiçando-se e esforçando-se ao máximo para trocar o pijama para alguma roupa apresentável... Mesmo sabendo que Polnareff, ao notar as olheiras proeminentes embaixo de seus olhos, provavelmente o mandaria de volta para o quarto para descansar.
Giorno saiu de seu quarto, grunhindo novamente quando viu que as cortinas estavam abertas e a luz do sol estava dominando o caminho. Ele apenas cobriu parcialmente os olhos com a mão e caminhou até seu escritório.
– Bom dia, GioGio. – Mista o cumprimentou com um sorriso, que logo se desfez quando olhou para seu rosto. – ... Bom dia? Mal dia?
Péssimo dia. – o loiro corrigiu secamente e sentou-se em sua cadeira, apoiando os cotovelos na mesa para esfregar os olhos. – O que temos para hoje?
Mista olhou de relance para a tartaruga na mesinha atrás de Giorno. A imagem holográfica do espírito de Polnareff deu de ombros, como se fosse se isentar do assunto.
O pistoleiro respirou fundo e se sentou no sofá, recolhendo os papéis que estava lendo mais cedo.
– Tem alguns relatórios dos capos de Toscana e Sicilia, interceptaram um navio com uma carga valorosa de pasta base de cocaína. – ele explicou.
– Hum... O que fizeram com a carga? – Giorno perguntou, sem levantar o rosto.
– Incendiaram o navio antes de afundar. – Mista respondeu.
– Ótimo. – ele se levantou, buscando uma pasta de relatórios na prateleira ao lado de sua mesa. Estava com muita dificuldade para manter seus olhos abertos. – O que mais?
– Hã... Nada muito fora do normal, Caprese teve algumas briguinhas com uma gangue pequena, mas já resolveu sem chamar atenção da polícia. – Mista olhou novamente para os papéis, lendo seu conteúdo. – Ontem à noite tinham alguns moleques incomodando o senhor Fagiolo no Libeccio, jogando pedras nas janelas e tal, mas eu dei conta, mandei o Fugo ir até lá ontem pra dar um susto neles... Ainda há vigias nossos nas ruas durante a noite, eles relataram pouca atividade da...
Enquanto Mista falava, Giorno sentiu como se sua cabeça estivesse girando, quase a mesma sensação de estar em uma montanha-russa, mas estando parado no mesmo lugar. De repente, suas pernas perderam as forças e ele caiu de joelhos, apoiando a parte superior de seu corpo com os braços na prateleira.
Ouviu Mista chamar seu nome, como um eco distante, e ouviu seus passos correndo em sua direção.
Estou bem! – Giorno disse imediatamente, um pouco alto demais, erguendo uma mão e retomando o fôlego. – Estou bem, só... – ele soltou um longo suspiro e levantou a cabeça para conseguir olhar para Mista, notando a expressão preocupada em seu rosto. – Só... Estou cansado.
– Só cansado. – ele ironizou, com um semblante sério.
– Só cansado. – Giorno repetiu, esfregando os olhos com uma mão.
– Tá. – Mista disse, completamente descrente, e segurou seu braço, ajudando-o a se levantar. – Você está pálido. – ele disse e colocou a mão na testa do loiro. – E está suando frio... Giorno, você definitivamente não está bem.
Antes que Giorno respondesse, Polnareff pigarreou alto, chamando a atenção de ambos.
– Giorno, posso conversar com você em particular? – perguntou, cruzando os braços junto ao peito.
O rapaz suspirou.
– Claro. – ele disse, bem mais baixo do que esperava e lançou um olhar para Mista, depois notando que ele bruscamente soltou seu braço.
Giorno caminhou até a tartaruga, deixando seu corpo ser "sugado" pela chave no casco, até cair sentado no sofá da sala secreta do Stand Mr. President, encarando o espírito de Polnareff, sentado logo à sua frente.
– Como está se sentindo? – ele perguntou duramente, vendo o loiro hesitar por um segundo.
– Normal.
– Mentira. – Polnareff rebateu, franzindo o cenho. – Você acabou de ter uma síncope e eu consigo ver na sua cara que você está péssimo!
Giorno respirou fundo, esfregando os olhos com uma mão. Polnareff era a última pessoa para quem falaria algo se estivesse se sentindo mal. Pela sua experiência com Dio, ele logo o mandaria para alguma sede da Fundação Speedwagon para fazer centenas de exames... Não era a primeira vez que isso acontecia, mas da última, alguns meses atrás, Giorno teve que fazer vários exames de sangue apenas para descobrir que pegou um simples resfriado. Nada realmente preocupante.
– Eu vou perguntar de novo e quero que me responda honestamente. – Polnareff disse. – Como está se sentindo?
Giorno novamente hesitou. Não adiantaria mentir para ele, ainda mais se sua aparência estivesse denunciando seu estado de saúde.
– Cansado... Fazem algumas semanas que tive dores de cabeça terríveis... Fotossensibilidade... E sinto que estou desidratando. – ele murmurou.
– Hum... Ok... – Polnareff pôs a mão no queixo, pensativo. – Me parece sério, vou avisar ao Jotaro.
Não! – Giorno exclamou, fazendo o espírito dar um sobressalto, mas logo pigarreou. – Quero dizer... Não é necessário, Kujo já tem problemas demais.
Os encontros com Jotaro Kujo sempre foram conturbados e estranhos. Giorno notava o olhar de ódio do biólogo sempre que o encarava, notava que ele se mantinha em guarda constantemente, sempre atento ao seu redor e a qualquer movimento que o loiro fizesse. Polnareff também era assim no começo, mas a convivência o fez ter um pouco mais de confiança em Giorno.
O espírito suspirou e repousou uma mão em seu ombro.
– Eu preciso lhe contar algumas coisas sobre o seu pa... Sobre Dio... E sei que você vai achar o maior absurdo. – ele murmurou e hesitou um pouco, escolhendo as palavras. – Não tem como colocar isso em outras palavras... Ele era um vampiro e... Você provavelmente herdou esses genes dele.
Giorno piscou algumas vezes, impassível, sem entender.
– Oi? – perguntou. – Você não espera que eu acredite nisso, não é?
– Eu sou literalmente uma alma presa em uma tartaruga que tem um quarto gigante no casco e a maioria das pessoas da gangue que você lidera manifestam seus espíritos para lutar uns com os outros, isso tudo não deveria lhe surpreender tanto... – Polnareff cruzou os braços e Giorno deu de ombros, concordando silenciosamente. – Enfim... A Fundação tem teorias de que o vampirismo pode ter algum fator hereditário...
– Ah, pelo amor de deus... – Giorno jogou as mãos para o ar com desdém e se levantou, caminhando de um lado para o outro. – Isso é a maior loucura que eu já ouvi...
– Pensa comigo... – Polnareff mostrou a mão, contando nos dedos. – Fotossensibilidade, fraqueza, sede incontrolável... Você está mostrando vários sinais.
Giorno soltou um riso baixo, quase zombando.
– O que eu vou ter que fazer agora? Beber sangue? – perguntou, arqueando uma sobrancelha.
– Sim, você não está levando isso a sério. - o francês respondeu. – Você pode ser o meio termo entre humano e vampiro. Mas vamos levar em conta que você tem o DNA de três pessoas diferentes compondo o seu, certo? – ele explicou. – Então, tecnicamente, essa característica compõe um terço do seu material genético. Você pode continuar se alimentando como sempre, mas vai ter que beber sangue periodicamente se quiser melhorar esse seu estado.
Giorno franziu o nariz.
– Qualquer sangue?
– Bom... É melhor dar preferência ao sangue humano, mas quem sabe? – Polnareff meneou. – Vampiros transformados por hereditariedade parecem diferentes de vampiros criados pela máscara de pedra ou por transfusão de sangue.
– Essa máscara de pedra... É a mesma que a Fundação pediu para encontrar e destruir alguns anos atrás?
– Exatamente.
– Então era isso que os preocupava tanto... – Giorno repousou o queixo na mão. – Queriam previnir que uma prole do Dio adquirisse uma máscara de pedra para virar um vampiro completo, é isso?
Polnareff suspirou.
– Basicamente, sim. – ele disse. – Eu sei que você não é o Dio, mas... Você entende por que Jotaro e eu estamos preocupados, não é?
– É claro, você passou por muita coisa por causa dele... E agradeço que ainda tenha confiança em mim, mesmo com esse fato. – o rapaz disse e logo ficou sério. – Vou relatar isso à Fundação.
Polnareff esboçou um sorriso.
– Ótimo, muito obrig-...
Mas... – Giorno o interrompeu bruscamente. – Estou fazendo isso por você... Não pelo Kujo. Você tem a minha confiança, ele não.
Ele soltou a respiração, fechando os olhos por alguns segundos.
– É compreensível... Obrigado mesmo assim.
O loiro se levantou, olhando para o relógio na parede.
– Se não se importa, eu preciso voltar ao trabalho. – ele disse, suspirando – Enquanto isso, peça ao Murolo para conseguir algumas bolsas de sangue, por favor.
– Pode deixar.
Giorno saiu da sala da tartaruga, aparecendo em seu escritório novamente. Mista estava escorado na escrivaninha e deu um sobressalto quando viu o loiro praticamente surgir do nada ao seu lado.
– Tudo bem? – ele perguntou, ainda preocupado.
– No geral, sim... – Giorno respondeu, impassível.
– Você não tomou café da manhã hoje. – Mista franziu o cenho.
– Mista...
– Eu vou trazer algo para você comer. – ele disse, virando-se para a porta.
– ... Não precisa. – Giorno suspirou.
– Sai dessa, você precisa se alimentar direito! Quase desmaiou agora a pouco... Cara, você precisa cuidar da sua saúde. – o mais velho retrucou, vendo-o se calar no mesmo instante. – Eu já volto.
Quando Mista foi sair, a porta se abriu bruscamente, acertando o pistoleiro bem no rosto e fazendo-o recuar alguns passos, praguejando alto.
– Oh... Desculpa, Mista. – Fugo disse, com uma expressão de dor em compaixão.
– Que tal avisar quando for abrir a porta assim?! Ai... Que merda... – Mista grunhiu, com as duas mãos em seu nariz, tentando apaziguar a dor.
Giorno sentiu um calafrio violento ao ver uma gota de sangue escorrer pelo rosto do mais velho.
Ele engoliu em seco. Ver Mista sangrar nunca foi um problema, o próprio Giorno já havia tratado pessoalmente de milhares de seus ferimentos, mas esses acontecimentos nunca o afetaram dessa forma. Talvez fosse sua mente lhe pregando peças depois de ouvir o que Polnareff disse.
– Giorno. – a voz de Fugo o tirou do transe de repente, logo fazendo-o piscar algumas vezes. Ele estava com uma pasta nas mãos. – Eu trouxe os relatórios da rota de tráfico.
– Oh... Claro... Obrigado. – Giorno pigarreou e pegou a pasta, largando-a em sua mesa assim que Fugo saiu da sala. Ele apontou para Mista. – E você não vai a lugar nenhum com a cara quebrada assim.
– Sai, não enfia o dedo no meu nariz! – Mista recuou.
Os dois ouviram Polnareff segurar o riso, nada discretamente, do outro lado da sala.
– Não vou enfiar o dedo no seu nariz. – Giorno revirou os olhos e tirou um lenço da gaveta de sua escrivaninha, pressionando-o contra o rosto do mais velho. A mão de Gold Experience se fez presente acima da sua, curando o ferimento de Mista. Ele cheirou o ar algumas vezes, franzindo o cenho. – Está usando algum perfume diferente?
– Hã... Não, é o mesmo que a Trish me deu de presente ano passado, por que?
– Nada. – Giorno pigarreou, afastando a mão bruscamente. – Pronto... Ainda dói?
Mista tocou o nariz com as duas mãos, verificando se estava tudo em ordem.
– Não, estou melhor, obrigado. – ele esboçou um sorriso. – Espera aqui, ok? Eu vou trazer o café pra você.
– Ah, Mista... – antes que Giorno contrariasse, o pistoleiro saiu praticamente correndo do escritório.
O loiro soltou um grunhido, sabendo que não iria conseguir ir contra a vontade de Mista. Ele notou que ainda estava com o lenço ensanguentado em suas mãos, agora trêmulas.
Giorno escorou-se na porta fechada, encarando as manchas carmesim no tecido branco. Ainda estava úmido... E quente.
Ele aproximou o lenço de seu rosto, respirando fundo.
Céus. Foi como levar um soco no estômago.
Giorno nunca havia usado drogas, mas tinha certeza de que era a mesma sensação que teve naquele momento.
O aroma do sangue invadiu suas narinas, atordoando todos os seus outros sentidos por alguns segundos.
Não era um aroma metálico, como estava acostumado. Sequer sabia descrever. Doce, forte, inebriante.
Giorno imediatamente foi arrancado de seu devaneio quando lembrou-se de que Polnareff ainda estava na sala, com a imagem flutuando acima do casco da tartaruga, de braços cruzados e uma expressão presunçosa no rosto.
– Cale a boca. – o loiro resmungou.
– Eu não disse nada. – Polnareff logo respondeu, ironizando.
– Mas ia dizer. Cale a boca. – ele repetiu, enfiando o lenço no bolso e saindo do escritório a passos pesados.
O francês apenas soltou um longo suspiro.
Que péssima situação.

ScarlattoOnde histórias criam vida. Descubra agora