Capítulo 1
— Pronto. Agora está feito — afirmei, com um sorriso escancarado, na tentativa de esconder uma pitada de vergonha, seguido por um suspiro profundo, enquanto observava minha mãe revirar os olhos e sorrir com divertimento. — Não me olha com essa cara de deboche, mãe! O mundo de hoje é assim. — Virei a cabeça para o lado e apertei os olhos. — Não vou ficar solteirona só por um capricho de não me render ao mundo digital. — Balancei a cabeça e entortei os lábios com divertimento. — Se da forma tradicional não estou conseguindo encontrar minha “metade da laranja” — gargalhei ao dizer a expressão cafona e ultrapassada para os dias de hoje, em que se escuta aos quatro ventos que nós somos uma laranja inteira —, vou me render à modernidade: que a máquina calcule e ache o meu par perfeito! — Balancei os ombros e revirei os olhos. — Ou, pelo menos, me revele algum homem minimamente aceitável disponível nesta cidade.
Sarah, minha mãe, uma mulher linda e feliz no casamento de cinco anos com Maurício, um personal trainer, remexeu o corpo no banco ao meu lado, na bancada da cozinha e passou as mãos com impaciência pela farta cabeleira platinada: — Bel, eu não acho que você esteja fazendo besteira. Se eu fosse chata, assim como você, também teria apelado para os sites de namoro. — Gargalhou sarcástica. — O que não concordo é com essa foto horrorosa! — exclamou, fazendo careta e balançando a cabeça de um lado para o outro. — Você tem um milhão de fotografias mais bacanas e um currículo muito mais divertido do que escreveu aí. Esse seu portfólio não está nada atraente. — Ela estava se referindo ao fato de eu ter usado uma foto de rosto, em que eu estava séria e ter resumido meu currículo de forma genérica, autônoma, formada em Artes (nem sei como e nem sei por que tenho essa formação, já que não tenho o mínimo interesse de modo profissional por esta área — isso, não citei), sem filhos, sem animais domésticos e sem vícios.
— Pois é isso que quero! — respondi, enfática. — Quero que, caso aconteça um encontro, o candidato ao meu coração — pisquei com ironia —, respire fundo e pense na enorme sorte que teve ao encontrar uma pessoa mais bonita do que aparentava na fotografia e muito mais interessante do que a descrição.
— Tá bom. — Ela levantou os ombros, ainda em reprovação. — Mas você sabe que com essa imagem, está diminuindo drasticamente as chances de encontrar um gostosão, pois, gente bonita — ela olhou para cima pensando sobre sua afirmação —, na maioria das vezes, gosta de gente bonita. E nessa foto, me desculpe, filha, você está um híbrido de derrota com depressão. — Bufou, desanimada.
É claro que eu sabia que gente bonita atrai gente bonita, era só olhar para minha mãe, deslumbrante aos 51 anos, que só namorou homens, no mínimo, charmosos, e que havia se casado com um cinquentão que mais parecia uma mistura de Richard Gere, na de fase Uma linda mulher, com o corpo de Brad Pit em Tróia.
— Sabe, Isabel, às vezes eu me culpo por essa sua relutância em se envolver com alguém...
Lá vinha ela com aquela história de que passou o pior momento da sua vida quando engravidou, aos 16 anos, e que não pôde contar com o imbecil que participou do ato nem com a família do idiota, muito menos, com a compaixão dos próprios pais — meus avós não a rejeitaram, mas os sermões diários e as caras de reprovação durante os dois anos que se seguiram, até que ela conseguisse deixar a casa deles, arrumar uma creche para que eu passasse o dia e ela pudesse trabalhar como secretária de um tio — e, por isso, toda a mágoa e ódio que sentia passou para mim e era culpa dela que eu tivesse me transformado nessa pessoa fria, descrente na humanidade e incapaz de abrir o meu coração para o amor...
— Mãe, eu conheço sua ladainha. Pode parar!!! — Respirei fundo — Se não lembra, vou refrescar sua memória: namorei o Breno, aquele, sim, um bastardo, idiota... Passei dos meus 28 aos 33 anos... — fechei a cara e repeti pausadamente: —... dos 28 aos 33 anos ao lado daquele canalha, para, um dia, sem mais nem menos ele me avisar que tinha conseguido um emprego em Brasília e que ou eu o acompanhava ou teríamos que terminar, porque ele não acreditava em relacionamentos à distância!
— Então, Bel, ele não te traiu, não te maltratou, não te abandonou... — Tentou argumentar.
— Ele foi um egoísta! — retruquei.
Ela balançou a cabeça e olhou para o lado.
— É... foi mais ou menos egoísta. Digo mais ou menos porque vocês não levavam aparentemente um relacionamento baseado em companheirismo. — Minha mãe entortou a cabeça para o lado, antes de concluir: — E, no mais, tenho certeza de que a possibilidade de ir com ele nem passou pela sua cabeça.
— E largar a minha loja?! — indaguei, alterada. — Eu batalhei muito para abrir aquele lugar.
Antes de abrir a “De cor e salteado”, uma lojinha embaixo do sobrado alugado onde morava, que era dividida em dois setores: a de cor, com pequenos artigos de decoração e a parte de salteados, uma pequena papelaria, que atendia ao público do bairro para miudezas do dia a dia. Minha melhor amiga, Raquel, e eu montamos a boutique que agora é só dela, pois, com o tempo, fomos percebendo que se insistíssemos na sociedade acabaríamos falidas e inimigas mortais, então, de comum acordo, seis meses após o início de nossa sociedade, resolvemos nos separar. Ela comprou minha parte e, foi uma coincidência muito bem-vinda, que uma loja ao lado da nossa estivesse vaga. Abri a lojinha usando o dinheiro recebido e o restante da minha poupança, que não era grandes coisas, apenas a merreca de pensão que minha mãe recebeu de meu pai desde o meu nascimento, até que completei 21 anos. Meu pai e eu nunca tivemos contato, mas ele acalentou o próprio coração me pagando, sem falta, todos os meses, uma quantia bem pequena, acredito que ainda maior do que a culpa que, aparentemente, não sentiu ao abandonar minha mãe, grávida, e nunca querer contato comigo. E foi assim que tive dinheiro para iniciar meu próprio negócio. A amizade voltou a ser o que era antes da sociedade, até melhor, diria, pois não havia mais desavenças sobre administração e ainda assim passávamos juntas praticamente o dia todo, às vezes conversando cada uma na porta de sua loja, quase sempre almoçando juntas, atrás do balcão, e quando eu precisava de uma ajuda, Raquel deixava sua funcionária, Elaine, cuidando da sua loja e aparecia prontamente para me socorrer.
— E você poderia apenas ter transferido sua loja para outra cidade. — Minha mãe balançou os ombros. — Afinal, o ponto nem é seu. Mas não, você usou essa desculpa de que, tudo estava acabado por culpa exclusiva do Breno, e se sentiu desobrigada de manter o namoro que, cá entre nós... Era nítido que só um dos dois estava minimamente tentando fazer com que desse certo. — Ela ergueu a sobrancelha. — E não era você essa pessoa, Bebelzinha.
— Chega! — protestei, suspirando. — Independente do que você pense que seja a causa do fracasso da minha vida amorosa, pode ficar tranquila, pois agora estou disposta a conhecer alguém.
— E por quê? — perguntou, não deixando o assunto morrer, mesmo já sabendo minha resposta.
— Porque quero me apaixonar perdidamente, chorar de saudade cada vez que meu namorado precisar fazer uma viagem sem mim. Sentir que meu coração está se partindo ao meio, quando não estivermos juntos... — dizia cada frase gesticulando as mãos e fazendo caras e bocas, com dramaticidade.
— Você está assim, desesperada, é porque suas amigas estão em relacionamentos firmes. — Começou a enumerar, levantando os dedos: — Helena acabou de se casar e a Raquel ficou noiva.
Minha mãe tinha razão, eu estava me sentindo meio perdida e bastante solitária. Helena e Raquel eram minhas duas amigas que ainda restaram morando no bairro e que, ainda, se juntavam a mim no grupo das solteiras. Só que há menos de um ano, Helena se casou e, no início, não parou mais de nos massacrar com o tema gravidez. Raquel pareceu ter se contagiado com o entusiasmo de Helena, ao falar sobre a vida de casada e não demorou para que ela e Hugo noivassem... E aí, sobrei.
Sobrei mesmo, porque eu não estava um passo atrás de minha amigas, eu nem ao menos tinha um namorado! No início, cheguei a negar que era por medo da solidão e também por perceber que estava muito mais próxima dos 40 anos que dos 20 e que tinha colocado na cabeça que arranjaria um par o mais rápido possível, mas como tanto minha mãe quanto minhas amigas sabiam que eu não me lançaria numa empreitada dessas, sem segundas intenções, acabei, sem pudor, expondo para elas o meu medo de não ter um filho biológico e nem uma pessoa com quem dividir a velhice.
Eu cismei de que precisava de alguém para dividir a vida, pois ainda não havia sido criado um robô substituto de companhia, e eu estava inconfessavelmente me sentindo solitária. Eu era feliz comigo mesma. Sempre me considerei uma ótima companhia para mim mesma. Minhas conversas internas sempre foram calorosas, estimulantes, engraçadas e sempre, sempre, sempre achei que isso bastaria. Basta para tanta gente. O porquê de não estar sendo suficiente para mim, era o que estava me deixando arrasada. Então, foi assim que, depois de uma conversa com a Raquel, resolvi — tentando fingir que era apenas por brincadeira, só para sair da rotina — me inscrever num site de relacionamentos. Não era ruim a ideia de poder conversar com alguém do sexo oposto, seduzir, ser seduzida, me produzir para um encontro... E, com sorte, sexo de qualidade, encaminhando na sequência para um casamento feliz, coroado com uma gravidez “inesperada”... Eu, de verdade verdadeira, nunca me interessei pelo assunto procriação, mas os 35, este número na minha idade, começou a fazer com que minha cabeça tivesse ideias loucas, tais como: casar e ter filhos, e o pior, não estava muito interessada em me apaixonar, não, eu queria mesmo era um homem que me fizesse companhia, me desse filhos e que, com sorte, tivéssemos interesses em comum. Se viesse com boa aparência e fizesse sexo decente, eu com certeza nem me importaria se não houvesse paixão.
Com paciência, eu poderia ter tido tudo isso que queria com o Breno? É bem provável que não, porque lindo ele era. Muito lindo mesmo. Nossa sintonia na cama era razoável, nem empolgante nem enfadonha, razoável do tipo que dá para ter para vida inteira, sem deleites e decepções maiores. Mas o Breno era muito apaixonado por ele mesmo, sua rotina era planejada meticulosamente para seu pleno prazer. E eu estava disposta a abrir mão da paixão ou do amor ou de qualquer sentimento mais profundo que una duas pessoas, mas queria alguém que me enxergasse, que se preocupasse comigo e, isso, eu sabia que nunca teria com ele, pois para isso serviu muito bem os anos que passamos juntos.
Eu nunca fui um poço de carinho com ninguém e às vezes algumas pessoas erroneamente me julgavam muito alheia, mas quem me conhecia, de verdade, sabia que, embora eu não fosse muito de perguntar, bajular e procurar, estava sempre pronta para servir em qualquer caso de necessidade, já o Breno, eu via o quanto para ele era custoso ceder algumas horas do seu tempo para cumprir tarefas não tão ou nada prazerosas, como a vez em que ficou comigo no hospital quando senti uma cólica menstrual fortíssima e ele suspirava pesado, não por solidariedade ou preocupação, mas com nítida impaciência. Fora as vezes que não se ofereceu para ir à farmácia, quando eu estava com enxaqueca ou preparar uma sopa, quando era pega por um resfriado.
Logo no início do nosso namoro comecei a perceber esses sinais de egoísmo, mas não me importava muito, porque nem sei dizer o quanto a companhia dele realmente me fazia falta ou bem, mas depois que terminamos e ele se foi, passei nossa história a limpo na minha cabeça para ver se havia agido certo deixando-o partir sozinho e cheguei à conclusão que sim, eu provavelmente teria alguém para sempre, mas não teria verdadeiramente companhia ou alguém com quem pudesse contar num momento de aperto.
— Bom, já vi que você não vai mudar de ideia, não é, Isabel? — perguntou, de forma retórica, minha mãe, enquanto se levantava do banco e prendia seu cabelo num coque alto. — Vou encontrar com o Maurício e vamos caminhar na praça. Vem com a gente! — convidou animada, referindo-se ao seu marido.
Entortei os lábios e franzi a testa, fazer exercícios estava na minha lista de coisas a cumprir durante o ano, mas como estávamos em março, preferi deixar a tarefa para depois de o segundo semestre.
— Ah, mãe... Eu devia, eu queria querer, mas hoje, não. Amanhã, talvez...

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De Cor e Salteado
RomanceBel é uma mulher descolada, na casa dos trinta anos, dona de uma lojinha de decoração e papelaria, a De Cor e Salteado. Tudo ia dentro da normalidade em sua vida até que ela se dá conta de que todos os seus amigos estão noivos ou casados. Alguns del...