Proteja Gaya

23 2 0
                                    

point of vision Ysis

Passamos a tarde inteira naquela cachoeira. Margarida me contou muita coisa sobre meninas como eu.

Meninas negras, acusadas de bruxaria por serem curandeiras, leitoras e fora de seus padrões. A vila é muito religiosa.

Quando pequena, meus pais me falavam da igreja local, fingiam amor dentro da Capela. Mas fora dela continuavam como monstros, homens primitivos, voltados para violência e desamor. Meus pais também eram negros.

-Certo dia Ysis, uma criança menor que você veio até mim. Era negra de pele escura.

-Onde está ela?

-A baixo da terra.

Sinto o impacto que foi ouvir aquilo.

-Foi pega pelos homens da vila.

-Meus pêsames.

-Está tudo bem. As mais fortes sempre morrem. As fracas fogem.

Continuo sentindo como deve ter sido.

Era uma criança, e foi morta por acusação de bruxaria. Como puderam?

Voltamos para a cabana ao anoitecer, Jantamos uma sopa de cogumelos e Celina um pote de leite.

Ao adormecer sonhei novamente com a mesma mulher.
Ela me olhava em cima das pedras, na cachoeira, estava sentada com as pernas cruzadas e os braços para trás como apoio. Me olhava fixamente, como se eu não estivesse vendo.

Fui até ela, subi pedra por pedra, que estavam molhadas por conta da cascata que despejava no riacho ao meu lado. Ao topo, quando me aproximo, ela continua a me olhar mas desta vez, abre suas pernas lentamente.

Sinto um arrepio atrás do pescoço, não faço ideia do que seja mas me prendi o olhar naquela mulher.

Ela continua a me olhar até soltar um breve sorriso e vira-se para frente, olhando para o horizonte. Ela levanta-se e pula no riacho, como se não temesse a correnteza. Ela mergulhou e a não achei mais.

Acordei um pouco mais cedo desta vez, Celina estava dormindo na mesma cama que eu, Margarida já não estava dormindo.
Levantei-me com cautela para não acordar a gata, andei com a ponta dos pés no chão batido de areia dura da cabana.

Vejo Margarida estendendo alguns lençóis.

-Bom dia Marga.

-Bom dia minha querida.

Ao levantar o tecido da tenda, o sol bate forte em meu rosto, então entro novamente para a cabana. Vou até o barril de madeira onde as frutas que Margarida colhia ficavam.
Pego uma maçã.

-Como dormiu?

Margarida entra na cabana.

-Bem.

-Que bom meu anjo.

Penso em perguntar para ela o que significaria sonhar com uma mulher de olhos verdes, mas guardo para mim.

Talvez eu pare de sonhar com ela.

Desta vez, fizemos uma mistura de frutas com leite para o café e Margarida foi até as plantações dela na floresta.

-Onde está as hortas?

-Em todo lugar.

Margarida me responde e eu decido olhar ao meu redor.

Havia árvores com frutos em toda a floresta. Bananeiras, macieiras, frutos pequenos, ate mesmo folhas para tempero.

-Não sabia que a floresta era tão rica de mercearias.

-Os homens da vila quase destruíram essa floresta uma vez, queriam tomar-lhe os frutos.

-Os homens costumam fazer isso Ysis, invadem a natureza e tomam o que querem. Como se a natureza fosse deles e não dela mesma.

-Ainda não entendo muito bem quando fala desta forma.

Margarida sorri de canto.

-Onde pisamos, se chama Terra.

-Sei disso.

-Onde moramos, se chama Terra. É um gigantesca esfera de vida.

Talvez agora eu esteja mais confusa que antes.

Margarida quebra um galho de um arbusto e desenha um circulo no chão.

-Vivemos nisso aqui Ysis, numa esfera de vida. Os antepassados a chamam de Mãe Terra. Esta esfera, contém o Ser mais poderoso que existe: a Natureza.

-Ela nos dá tudo, comida, água, calor ou frio, chuva e animais. Mas também tem poder para tirar. Ela pode tirar dos pequenos frutos até as maiores vidas pisadas nesta Terra.

-Está dizendo que cada árvore aqui possui vida?

-Com toda certeza.

Fico pensativa sobre isso e olho ao redor.
Percebo o balançar das árvores, os pássaros assobiando melodias, formigas no chão seguindo seus caminhos, duas mulheres no meio da mata em busca do que almoçar.

Lembro-me da água da cachoeira, as vidas que viviam no riacho, tudo tão vivo quanto Margarida fala.

-A Natureza deve ser respeitada Ysis, ela tem memória.

-Memória?

-Ela lembra-se de cada ser que passa por ela, se for bom você terá dos melhores frutos. Mas se for mal, terá a vingança da Natureza, não lhe concedendo uma única folha se quer.

Margarida entra nos arbustos e começa a colher. Decido ajudá-la.

-Por que os homens não entram na floresta?

Margarida respira fundo.

-Havia uma mulher, mais antiga que eu. Ela se chamava Gaya, decidiu morar dentro da floresta após uma confusão na criação da vila.

-Os homens entravam aqui sem ética, brutais. Então Gaya os expulsou, dizendo que próxima vez que entrassem na floresta para fazer o mal, seriam mortos.

-O que aconteceu depois?

-Gaya viveu aqui por muito tempo, e todo homem que entrava nunca mais saia da floresta, se perdiam aqui dentro e morriam sozinhos. Nunca mais eram achados.

-Como conseguiu entrar na floresta Margarida?

-Gaya era uma mulher gentil, contudo forte mas gentil. Permitiu que qualquer alma boa pudesse entrar na floresta e conseguiria sair dela se quisesse.

-Mas os que conheciam a floresta, não tinham mais desejo de voltar a vila.

-Por que não tem mais pessoas aqui?

Margarida muda sua expressão ao ouvir minha pergunta.

-Não nascem mais almas boas como antes. Os filhos dos homens estão nascendo corrompidos, sujos dos sentimentos humanos.

-Quando lhe vi na cabana Ysis, não pude acreditar. Há 19 anos que ninguém entra nesta floresta. Era sempre eu e Celina aqui.

-Achou Celina na floresta?

-Sim.. Mas tem bem mais que isso, um dia você saberá. Vamos para casa.

Margarida já tinha colhido legumes suficientes para nós, ao chegar em casa, ela fez um cozido de cenoura e preparado massa para abóbora.

Tomamos café pela tarde e Margarida me contou mais sobre a Natureza e a mãe Terra. E eu já não sinto mais vontade de retornar para a vila.

O sol negro - A lenda.Onde histórias criam vida. Descubra agora