Conto 01 - Sta. Berenice

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Eu empurrava e massageava o débil e pequeno peito dela, ela tossia alucinadamente sufocante, via em seus olhos vidrados as pupilas oscilantes, a vermelhidão enveiando seus sua esclera, mas sem que o marejar tomasse posse de seu rosto.
Ela estava manchada, tomada da fuligem, fedendo a queima ao fogo bem mais que meu cigarro. Suas vestes estavam puidas da desgraça de poucos minutos atrás, e sufocada sob grilhões de asma que nunca consegui tratar o suficiente, lá estava minha irmãzinha Berenice com seus pulmões negros e esfumaçados.
Nós moravamos no 3º andar do prédio, eu estava voltando para casa quando vi tudo que me pertencia a fatalidade do fogo. O céu de Londres estava imerso na fumaça de fábricas, mas não naquela noite, naquela noite ele se afogava no nublado de minha casa perdida.
Eu corri, desesperadamente eu corri, eu queria salvar minha doce irmãzinha de 7 anos, cujo fogo sequestrava, eu queria salvar a única que sobrou de minha família. Eu condenava a cada passo entre minhas tosses e arrombos, praguejava contra o piromaniaco que queimara minha casa. Aquilo não era azar, nem vontade de algum Deus, era a desgraça da vida e a Maldição da existência do homem.
Todos haviam fugido, mas minha irmã jamais teria fôlego para sair de lá sozinha, e com uma coberta eu a busquei e busquei, quebrando tudo que já estava sensível. Vi meus estudos, meu laboratório, meus livros tudo se esvair com o fogo, eu estava perdendo tudo, eu não podia perder ela também...
Então de dentro do quarto dela a retirei sofrega e quase inanimada sob o afugentar da fumaça. Molhei um lenço em água e coloquei sob seus orifícios respiratórios, a cobri e a levei as pressas, quebrando pisos e me ferindo a toda, mas nenhuma dor se comparava com a urgência de tudo aquilo.
Eu a repousei longe de todos, em um beco, e tentava por tudo que me importava salvar sua vida. Eu já havia perdido meu pai em tenra idade na guerra, e temia as consequências da gripe espanhola que abateu e executou minha fraca e dolorosa mãe, que estava ferida de corpo e alma. Era só eu e Berenice, era só eu e ela e mesmo sendo médico não vi nada que pudesse fazer por ela.
Quando fitei as profundezas de seu olhar tortuoso e melancólico, vendo o sufocar de sua vida e os grilhões de seus pulmões estarem a lhe puxar para o Vale da Morte, eu me via diante da dor extrema, da solidão extrema. Jurei por Hipócrates, jurei por tudo que era sagrado que trataria e curaria minha débil e frágil irmã... E agora todo meu poder de decisão se sumiu com o fogo que devorara meus estudos sobre o tratamento dela...
O cruento mundo me fustigava enquanto a via sofrer lentamente com respiração destruída e entrecortada, um esforço infundado de uma asmática sufocada, e ela estava, em gritos silenciosos implorando pelo fim da dor. Seu peito deveria estar queimando, sua cabeça deveria estar em transe de agonia e angústia. Ela iria morrer e eu ficaria sozinho.
Lembrei de todas os pacientes do hospital, intrataveis e incuráveis que eu tentava a todo custo a vida salvar e por fim a acabavam mortos em minha mesa, inanimados e com os olhos fixos nos meus. Mas estes eram os sortudos, pois nem ficariam vivos para a desgraça que o mundo lhes aguardava de braços abertos e nem ficariam sob uma dor extrema, em estado catatonico de agonia, vegetando sobre uma cama e preso dentro de seu próprio corpo.
As famílias, as malditas famílias ocupavam até o fim aquele leito como se sentissem prazer em vê-lo sofrer, sofrer uma morte lenta e dolorosa...
Todos de mim discordavam da minha piedade, discordavam de minha visão lógica e da minha empatia. Eu queria proporcionar aos abençoados uma morte rápida e honrosa, sem que sofressem de um corpo maldito com uma esperança ilusória. Mas quando eu via que não se poderia salvar ao corpo, ao menos não queria que sofresse a alma.
Eu peguei minha faca, aquela que eu usava para me defender nas ruelas caso fosse atacado, e quase cego das lagrimas, ouvia Berenice em tentativas de falar sílabas de meu nome, ela estava cega e fustigada, eu só poderia libertar ela.
Berenice eu tentei, por tudo minha irmãzinha, eu tentei te salvar, mas não posso fazer mais nada além de te dar a piedade. Você irá para Deus e eu queimarei no inferno por você... Eu te amo minha irmãzinha, e por isso terminarei com teu suplício... E com o meu...
Com uma incisão na garganta, 2minutos e tudo sumiria, e jorrou e jorrou profusamente, a pequena bonequinha tremia em espasmos horrendos e de baixa frequência, se engasgando, pela última vez...
Me deitei ao lado dela, tocando seu rosto infantil e abraçando seu cadáver sangrento me inundando da pureza de seu sangue.
Aquele dia era o último dia que eu lutaria, aquele era o dia que meu sobrenome sumiria no vento... O metal frio penetrou minha garganta a rasgando uma fenda como a de uma vagina, e vazando em jorros de sangue, sumindo tudo, minha voz, meu calorzmeu tato, minha audição, o olfato, e por fim a visão se enturbia... Adeus cruel mundo, adeus Berenice...
Eu queimarei até o fim de minha alma... Adeus Berenice... Sta. Berenicezinha....

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