Capítulo XXII - Salvas pela amizade...

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   Quando finalmente acabaram de comer os seus bolos e beber os seus sumos, Laila pagou a conta e as duas dirigiram-se para fora do estabelecimento, admiraram o jardim lindo que tinham à sua frente, assim como a universidade que ficava à sua esquerda e que devia concretizar tantos sonhos, apesar de ser privada.

   Aquele era, sem dúvida algumas, um dos lugares bonitos dentro daquela enorme cidade, que ainda assim não era a maior de Portugal.

   Viraram em direção à universidade, progredindo para além dela. Iam falar com Vitória e dirigir-se para o lugar onde ela dormiria esta noite.

   Sim, porque Margarida sabia que Vitória não se importava em dormir onde quer que pudesse encostar a cabeça.

   Era altura de deixar a arte um pouco de lado e fitar o mundo, onde as pessoas viviam para esconder os seus sentimentos muito mais do que a tentar expressá-los.

   Caminharam em direção a uma paragem de metro. A realidade idílica daquele jardim no meio da cidade a abandoná-las lentamente. A imensidão a cobrir-se cada vez mais de cinza e betão, mostrando aquilo de que uma cidade é feita, aquilo que a diferencia do campo. Passado um pouco, a natureza já não as rodeava, nem sequer da forma rudimentar como as rodeava há pouco tempo atrás. Tudo ali era frio, como as redomas que os seres humanos amam construir à volta de si próprios. Construções humanas, mostrando tão pouco sobre si mesmas, representando tão pouco e tendo tanta importância sobre o mundo. E para finalizar um céu implacável que pendia sobre as suas cabeças, reafirmando liberdade e proteção. Como um ponto de fuga sempre aberto, mas escandalosamente inalcançável.

   A descida para a paragem de metro para a qual se dirigiam ficava numa zona mais aberta, dentro da própria cidade e próxima a várias universidades. Vitória, que contava de um dia se licenciar, para nem sequer sonhar mais alto, encontrava-se apoiada num dos corrimões que circundavam o local da sinalização da paragem de metro.

   Quando viu Margarida a aproximar-se com uma amiga dela dos tempos da escola resolveu aproximar-se delas, mesmo não estando muito recetiva a conhecer novas pessoas. Isso tentar sustentar uma conversa cordial com ela pelo menor tempo possível.

   Pelo que conseguia observar, no entanto, a outra garota que acompanhava Margarida também parecia simples. Numa vertente mais desportiva do simples, mas igualmente simples. Não podia dizer que nunca a vira na escola, mesmo a falar com a sua amiga, o que poderia argumentar é que nunca demonstrara interesse por ela, de tal forma, que nem lhe sabia direito o nome.

   Nem com a própria Margarida, Vitória conseguia falar direito. Claro estava que era uma das pessoas com quem se dava melhor, que mais gostara de conhecer quando esteve presa na instituição. Mas, quão grande e significativa pode ser a interação de uma pessoa que faz de tudo para me manter sozinha?

   Partilhar um teto com Margarida fora uma obrigação dada pelos serviços, mas, de certa forma, impedira-a de chegar ao fundo mais depressa, já que, com aquela garota, Vitória era obrigada a socializar e ela gostava de se manter presente, ampará-la e protegê-la!

   Independentemente de tudo isto, parecia que aquele seria o primeiro dia em que dormiriam na rua!

  Ao chegar junto dela, Margarida apresentou as suas duas amigas e Laila começou logo com os apelidos, encurtamentos de nome, como lhe quisessem chamar! Era uma maneira de criar vínculo, sim, mas, no seu bairro, era quase que um comportamento natural. As pessoas nunca usavam o seu nome verdadeiro e isso em si não tinha mal, o mal residia em quando esses apelidos, alcunhas acabavam por retirar a própria identidade à pessoa. Como chamares-te "Isabel" e toda a gente te tratar por "Patrícia" ou por "Tigre", rompendo deste modo com o passado e estas pessoas consigo mesmas.

   "Vicky", em princípio, não era uma má alcunha. Era apenas um diminutivo do nome "Vitória", mas a garota não gostou de escutar o mesmo da boca de Laila. Talvez preferisse um que em nada lhe estivesse associado. A partir daquele apelido, poderiam construir um laço.

   Vitória foi irónica na resposta, em reação à primeira vez que Laila utilizou "Vicky", no meio de uma frase, referindo-se a si:

   - Então, se tu me vais chamar de "Vicky", isso quer dizer que posso chamar-te de "LaiLai"?

   Laila sorriu como resposta e para a própria surpresa de Margarida, indagou pacientemente:

   - Não é nada que já não me tivessem chamado antes, sabias? Depois que consegui fazer o meu irmão mais novo parar de me chamar "mãe", ele chegar a chamar-me assim por uns tempos. Não chega a ser um diminutivo com o qual simpatize muito, faz-me lembrar gatos, mas, se quiseres, estás à vontade para me chamar assim, por minha conta e risco.

   Vitória retorquiu:

   - Acho que nem sequer vamos ter muito tempo para nos tratarmos assim uma à outra, já que a nossa interação se resumirá a esta conversa!

   Foi, então, que Margarida tomou a palavra e disse:

   - Na verdade, pedi-lhe para passarmos esta noite em sua casa e ela aceitou, pelo que acho que a vossa interação não se resumirá a esta conversa!

   Vitória pareceu ficar incomodada com a afirmação da amiga! Contra todas as possibilidades racionais e estando perfeitamente explicado para a compreensão de Guida, a garota parecia preferir dormir na rua! Começou a barafustar sobre o facto de, para ela, Laila ser praticamente uma desconhecida!

   Margarida não deu muita atenção às suas lamentações, já que sabia que era a dor a falar, a dor que ser alimentada, como começava a ser posta em causa, a ser enfrentada, se não pela própria Vitória, por uma pessoa com quem ela mantinha um vínculo forte, a sua amiga.

   O amor que tinha por ela a promover esperança na sua alma, uma emoção que ela precisava muito.

   Todavia, contrariamente a tudo o que pudesse ser pensado do ponto de vista racional, Vitória pareceu sossegar, quando Laila deixou escapar que vivia num bairro. O seu semblante relaxou, mas o seu olhar que antes tinha um certo brilho, como se algo dentro dela estivesse a ser libertado, paralisou naquilo que poderia ser descrito como uma apática tristeza.

   O seu interior e o seu exterior a contrastar no máximo que podiam, sem sequer se darem conta. A demonstrarem as suas diferenças mais estruturais. É que ao que se a emoção ou sentimento que mais tomava ênfase na sua alma se poderia constatar ao observar o seu olhar, o seu corpo estava em consonância com o que o mundo externo lhe pedia. Embora a sua natureza fosse diferente do que expressava, estava de acordo com as expetativas que o mundo externo tinha para as armadilhas que ele mesmo lhe jogou e jogava.

   Não que todos os olhares transmitissem algo, mas como ainda havia muitos sentimentos e emoções dentro da alma daquela garota, o olhar de Vitória era caraterístico e muitas vezes, revelador.

   Haveria olhares de pessoas em que estas tinham tão pouco a preencher as suas almas que simplesmente eles não eram expressivos, poderia até terem algo de vazio, demonstrando o tamanho da dor que atormentava aquelas almas, não conhecendo outra forma de preenchê-las, se não com um terrível "nada". Mas, esse não era decididamente o olhar com que Vitória se abria ao mundo. O seu olhar era inconscientemente expressivo e vinculado ao interior de si mesma.

   Laila fez o comentário que muitos não teriam coragem de fazer.

De regresso a casa...Onde histórias criam vida. Descubra agora