Aron estava voltando da caça carregando o javali abatido nas costas sob olhares curiosos dos moradores da vila de Taure, que sempre queriam saber o que o caçador trazia.
Chegou à sua cabana e pendurou o animal abatido de ponta-cabeça. Abriu a barriga e tirou as tripas; em seguida, lavou internamente com água. Pegou uma faca afiada e separou o couro da carne. Colocou o animal já sem o couro em cima da mesa, cortou os pés fora e começou a separar as carnes. Pernil, lombo, paleta, costeletas.
Quando terminou, como sempre, as pessoas já estavam do lado de fora de sua cabana aguardando. Trocou uma parte da caça por frutas, pão, vinho, cerveja e algumas moedas de cobre. Voltou para dentro de casa e, enquanto comia uma maçã, Aron temperava um pernil com vinho e alho amassado.
"Agora sim vou me esbaldar", pensou.
Do lado de fora da cabana, montou uma fogueira e, com um estalar dos dedos, as chamas começaram a queimar as toras de madeira. As curiosas crianças da região não demoraram a aparecer.
— Vamos almoçar, meus pequenos amiguinhos? — ofereceu Aron.
— Obrigado, Aron, já almoçamos. Viemos para ver você treinar os seus truques — disse o mais velho chamado Phillip.
Aron praticava regularmente sua feitiçaria nos fundos de sua cabana, que ficava na periferia da vila. "Os feiticeiros devem diariamente treinar o uso de sua energia mágica, assim como um guerreiro treina os seus músculos. Quanto mais treino, mais forte ficará e mais tipos de feitiços de fogo você conseguirá fazer", dizia Edward. Os feiticeiros humanos conseguiam dominar um tipo de energia mágica. Aron dominava o fogo. Edward lhe contava histórias de feiticeiros poderosos do fogo que conseguiam transformar pedra em lava derretida, do ar que podiam invocar grandes tempestades, e da água que afundavam navios com ondas gigantescas.
Para Aron eram apenas histórias, lendas. Nunca havia visto, e ninguém que passou pela vila também nunca viu nenhum feiticeiro tão poderoso assim. Sempre eram apenas histórias contadas. Certa vez, Aron perguntou a um grupo de feiticeiros que estava de passagem indo para a torre do canal, tendo as mesmas respostas.
— Vamos, garotos. Hora do show — disse Aron.
Atrás da cabana e fora dos limites da cidade, ele começou seu treino sob os olhares ansiosos das crianças. Primeiro, um estalo de dedos e a chama apareceu na sua mão.
— Você não se queima? — perguntou Rafaello, o irmão mais novo de Phillip.
— Eu não me queimo com minha própria energia, também não me queimo com fogo natural. Mas o fogo mágico de outro feiticeiro pode me machucar.
O fogo na mão de Aron cresceu, virando uma esfera incandescente. Então ele arremessou, acertando um tronco de árvore já seco. A árvore começou a pegar fogo. Aron estendeu as duas mãos para frente e depois as uniu junto ao corpo. Imediatamente o fogo apagou.
Colocou as crianças em linha e deu uma tocha para cada uma.
— Braços estendidos à frente e não se movam — disse Aron.
Estendeu o braço direito na direção da fogueira e cerrou o punho. A fogueira brilhou com mais intensidade e, bem devagar, Aron foi movendo o braço na direção das tochas. As labaredas foram se alongando conforme Aron comandava até acender todas as tochas.
Para finalizar o feitiço que mais o deixava cansado e esgotado, estalou os dedos em ambas as mãos e as chamas apareceram. Formou esferas nas mãos e as uniu, foi afastando lentamente as mãos enquanto concentrava sua energia para aumentar a esfera. Os olhos dos presentes arregalaram enquanto a bola continuava a crescer. Quando atingiu dois palmos de diâmetro, Aron a arremessou para cima. A esfera atingiu 10m de altura. Ela explodiu gerando um show de luzes alaranjadas. Gritos de alegria, assovios e palmas ecoaram pelos jovens curiosos.
"Hoje consegui fazer uma esfera maior e em menos tempo. Realmente minha energia e meu controle estão aumentando", pensou Aron.
As crianças se despediram e, entre as conversas paralelas, Aron ouviu o sonho de alguns deles de serem feiticeiros um dia.
"Para alguns, como Phillip, infelizmente não será possível. Feiticeiros já nascem com o dom e, na maioria das vezes, manifesta-se até os cinco anos de idade", pensou.
Ouviu-se uma comoção não muito distante dali e Aron correu para ver o que estava acontecendo. Era a mulher do líder da vila. Ela tinha acabado de ter uma convulsão ocasionada por uma febre alta.
— Do que vocês precisam? — perguntou Aron para os curandeiros da vila.
— Casca de freixo, casca de salgueiro branco e folhas de cardo-santo. Nós costumamos comprar de comerciantes, mas a frequência deles diminuiu nas últimas semanas — disse o curandeiro-ancião.
— Deixa comigo — falou Aron com um olhar determinado.
Saiu em disparada pela vila até sua cabana, pegou seu arco e aljava de flechas e partiu em direção à Floresta dos Elfos.
Os elfos não permitiam que humanos entrassem na floresta. Era um acordo que tinham feito com o tataravô do lorde Dyufin, quando os humanos desembarcaram na região. Os humanos ficariam fora da floresta, e os elfos não se meteriam nos assuntos humanos, era este o acordo. Os elfos vigiavam as fronteiras das florestas e expulsavam os humanos que se "perdiam" acidentalmente, os reincidentes eram aprisionados e entregues ao lorde Dyufin, que os punia severamente. Humanos e elfos não eram amigos, porém se respeitavam e eram aliados.
— Pelo menos existe uma vantagem em ser meio-elfo. Eu sou tolerado na floresta.
***
Pouco tempo depois, Aron chegou aos limites da floresta. A quantidade de árvores havia aumentado consideravelmente e, após avançar alguns metros, até mesmo o céu era difícil de se ver, oculto pela copa das centenárias árvores.
Aron era um caçador habilidoso, que se movia em silêncio, escondido e atento aos sons da floresta. Mesmo com toda sua habilidade, sabia que dezenas de olhos estavam sobre ele o tempo todo. Sabia que os elfos o estavam observando.
— Só vim buscar remédio e em pouca quantidade, nada que atrapalhe o balanço ou equilíbrio natural da floresta e blábláblá — disse Aron para as árvores, sabendo que havia elfos por ali.
Seguiu floresta adentro até encontrar um salgueiro branco. Com sua adaga, retirou um pouco da casca e seguiu sua busca. Os olhos ainda o observavam, ele podia sentir. Sabia que a floresta era segura, que o único perigo ali eram animais selvagens, não precisava se preocupar com monstros ou bandidos. Finalmente achou o freixo e novamente, com sua adaga, retirou um pedaço da casca.
Poucos minutos depois, lá estava o último ingrediente: a plantinha com sua pequena flor amarela e folhas espetadas. Aron parou um segundo para admirar a beleza exótica daquele espécime.
— Não tão bonita como seu primo girassol, mas tem seu valor.
Por poucos segundos, Aron se distraiu. E ia ser lembrado dessa distração por muito tempo.
***
Aron estava sendo seguido, e mesmo antes de encontrar o salgueiro branco, ele não estava sozinho. Uma sombra pulava de árvore em árvore esperando a hora certa de surgir.
— Não posso atacar agora enquanto ele pega a casca da árvore. Ele está com a adaga na mão, eu posso me ferir.
O vulto observou Aron pegar também a casca do freixo.
— Para que ele está colecionando cascas de árvores?
Por alguns instantes, perdia Aron de vista, porém logo depois conseguia encontrá-lo.
— Você é bom, mas eu sou melhor.
A sombra perseguidora sorria pensando no que iria fazer quando surgisse a oportunidade perfeita de atacar. Tinha certeza de que uma hora ele iria baixar a guarda.
E a hora chegou. A sombra na espreita viu que Aron estava distraído admirando o cardo-santo e aproveitou a oportunidade.
Aron só percebeu quando era tarde demais. Sentiu o peso cair sobre seus ombros e foi ao chão. Deitado com a cara na vegetação rasteira, ouviu o sussurro no ouvido.
— Te peguei.
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O Feiticeiro Mestiço
FantasyO livro conta a história de Aron, um meio-elfo feiticeiro em um mundo onde a relação entre humanos e elfos não geram descendentes. Após ser rejeitado pelos elfos, passou anos ocultando sua identidade e morando numa pequena vila com medo de descobrir...