- A igreja luterana da Alemanha não tem que se intrometer nestas terras! – Bradou Emiliano jogando o jornal na mesa enquanto toda família tomava café da manhã.
- Você me assustou homem do céu. - Falou Flávia pousando suavemente a xícara de café na mesa.
- Você anda muito assustada Flávia. – Emiliano sorriu ao olhar para ela. Flávia Cerqueira era a única pessoa no mundo que acalmava o monstro que vivia dentro do coronel. Flávia possuía a delicadeza, a força, o porte de uma rainha e Emiliano reconhecia isso.
Sentada a frente de Flávia na grande mesa de madeira da sala de jantar, Fabiana observava aquela cena, os dois rindo um para o outro, era a prova de que não era verdade que pessoas más não possuem a capacidade de amar. Durante toda vida Emiliano a amou, ele a devotava, admirava sua calma e a capacidade de perdoar cada uma das suas traições em troca de uma grande caixa com um vestido novo e um buquê de rosas amarelas. E ainda assim, com traições e alfinetadas diárias, ela seria capaz de levar um tiro no lugar dele.
Como o ouro é forjado no fogo, Fabiana foi forjada em casa. Na grande casa luxuosa de dois andares da Vila Nova, onde aprendeu que algumas coisas precisam ser amadas antes de serem amáveis, onde aprendeu que nem mesmo amor é capaz de salvar alguém que não quer ser salvo.
- O que lhe aflige meu esposo? – Perguntou Flávia segurando a mão dele.
- A igreja Luterana quer construir outro hospital para exportar pesteados para cá.
- Mas já tem o Nazareno, e nem mesmo o Nazareno tem recursos e mão de obra o suficiente para cuidar dos doentes que estão lá.
- Enquanto houver voluntários como a Fabiana para cuidar do ninho de ratos de graça, eles continuarão inventando desgraças para mandar para esta terra.
Fabiana quis retrucar, mas sabia que ele a trancaria no quarto e ela tinha doentes para cuidar, e não podia negar, queria ver Lucas.
O silêncio era um preço justo a pagar, ou eu era mesmo uma covarde. Não importava.
- Você devia ouvir seu pai filha. – A mãe ergueu os olhos verdes suplicantes em direção a filha.
- Eu tenho palavra minha mãe.
- Pois a desfaça. – Emiliano falou, já não era a voz doce que usava com Flávia.
- O senhor me ensinou que palavras são sagradas meu pai, que as palavras são nossa honra.
- Pois vá então para o ninho de ratos. – Falou batendo a xícara na mesa- mas volte antes das três da tarde, hoje tem quermesse de Santo Antônio e nós iremos a festa.
- Pensei que não fossemos! – Falou Flávia de sobressalto. – Você não me avisou para que eu preparasse meus vestidos.
- Eu acabei de decidir que iremos, preciso conversar com uns compadres sobre este novo pronunciamento da igreja luterana. E além do mais, hoje chega um novo padre na cidade, preciso de seu apoio contra aqueles malditos luteranos.
- Eu gostava do padre Francisco.
- Um novo padre pode fazer bem a essas terras, pode ser influente, ouvi dizer que chega ainda esta manhã, vem lá dos lados de Pelotas.
- Volte depois do almoço Fabiana, você também precisará se arrumar. – A mãe analisou a menina com os olhos ao falar. Emiliano sorriu em aprovação. Antes que Fabiana pudesse pensar em responder algo, ele chamou a atenção da esposa.
- Flávia.
- Sim querido.
- Compre o vestido mais lindo do ateliê da madame Sara. Você é minha esposa, ninguém deve estar mais linda do que você, quero que esteja impecável para dançar comigo.
- Você está me colocando em um alto pedestal, não vou querer descer dele.
- Não quero que desça, e eu mataria quem tentasse lhe tirar de lá. – Emiliano respondeu, os olhares deles fixos um no outro.
Fabiana aproveitou a ocasião para sair sorrateiramente, antes que sua mãe mudasse de idéia e lhe proibisse de ir para o hospital.
A carruagem já estava a sua espera, ela subiu e não precisou pedir ao cocheiro que lhe levasse até o hospital, ele já sabia o destino.
O jovem médico não dormiu a noite anterior.
Sabia que devia ter ido para a pousada onde estava instalado, sabia que todos pacientes eram sedados a noite no Nazareno e que sua presença ali não era necessária, não era o seu plantão, mas mesmo assim ele permaneceu no hospital.
Não queria dormir, não queria ter que lidar com aquilo, não agora.
Foi em vão. Vencido pelo cansaço da longa viagem por mar até São José do Norte, ele dormiu sentado em uma cadeira no corredor.
O inevitável aconteceu. O sonhou de sempre, a mulher estranha de sempre, vestida de branco, os cabelos desprendendo do coque na nuca, aqueles olhos, aqueles benditos olhos ingênuos e cheios de esperança, aquela força de mudar o mundo... Mas agora ele sabia o nome da mulher desconhecida com quem sonhava há quase quatro anos, Fabiana.
Havia sonhado por anos com uma mulher que jamais havia visto, e agora havia conhecido aquela estranha que por tantas vezes invadia seus sonhos.
Aquele sonho que acabava sempre do mesmo jeito, uma voz conhecida, uma voz que nem que se passasse milhões de anos esqueceria, uma voz suave que gritava "Você não foi capaz de salvar seu amor!" e depois disso sempre acordava suado, com um peso no peito, com uma má intuição, sentindo-se puxado por um laço invisível que por incrível que pareça, era bom.
E agora sabia que ela era real. Não era um fantasma ou uma alucinação, Fabiana era real. Isso tinha que significar algo, mas a verdade é que ele não queria que significasse.
Não acreditava que um dia conheceria uma pessoa com quem sonhava a tantos anos, e lá estava ela, adentrando o hospital antes das sete horas da manhã com o uniforme impecável. Lá estava ela, trazendo luz e vida aquele hospital escuro e mórbido.
O médico bebeu o ultimo gole do seu quinto copo de café sem açúcar, já começava a sentir falta do café da capital, levou a mão ao bolso da calça e retirou a aliança dourada de lá, nela os nomes " Sr. & Sr. Fontana" brilhava forte.
Sabia que não podia fazer aquilo com Luisa, não era justo com ela e nem mesmo fiel ao que acreditava. Lutou consigo mesmo internamente e mesmo assim não foi capaz de resistir aquele convite ao perigo, talvez aquele convite ao amor.
Guardou novamente a aliança no bolso e caminhou até a senhorita Fabiana.
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O nazareno
Historical FictionNão é um romance qualquer, um mistério, segredos, uma tragédia e um amor diferente de tudo que você ja viu.