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E aqui estou eu mais uma madrugada acordando em meio ao choro. Um aperto no peito me persegue desde aquele dia e parece que cada vez mais eu sou puxado para esse lugar. 

Desde o começo do verão, quando mudamos para casa do tio Ricardo, não consigo mais dormir direito. Sinto falta do meu quarto antigo e do aconchego do interior. A luz da lua atravessa minha janela descaradamente no meu rosto, esse quarto sempre me parece frio mesmo depois de colocar todas as coisas que foram possíveis trazer de meu antigo lar, me levanto e me aproximo da janela e observo que as luzes de nosso vizinho ainda estão acesas, com o movimento de algumas pessoas, o barulho de latido de cachorro à distancia e as luzes da lanterna do segurança piscando. No cabideiro está pendurado o estupido uniforme do ridículo e extremamente caro colégio do qual meu tio me matriculou. Ele só conseguiu essa vaga por causa da sua fama, não por mérito meu, mas é assim que as coisas funcionam aqui nesse mundo burguês.

Não é como se eu e vovó vivêssemos em extrema pobreza lá no interior, mas as coisas eram um pouco mais realistas. Nesse condomínio cada casa custa o que no meu bairro daria para comprar seis ou sete casas, a secretaria do meu tio me contou que o filho do vizinho da frente atropelou uma garota e nada aconteceu com ele além de um pedido de desculpas, já que ela não se machucou.

Me sento na cadeira próxima a janela e observo meu celular novo, pois meu tio não quer que eu passe vergonha no colégio novo por ter um modelo ultrapassado, é o ultimo dia do verão e não sei se até o inverno eu ainda vou ter minha avó comigo, já que nada consegue parar o câncer dela. Não estou pronto pra isso, eu sei que não estou, mas vou ter que aprender lidar com esse novo mundo. 

Um aperto no peito me persegue desde aquele dia e parece que cada vez mais eu sou puxado para esse lugar.

Um aperto no peito me persegue desde aquele dia e parece que cada vez mais eu sou puxado para os cabelos louros, o vento forte e o olhar de tristeza nos olhos dela. 

Decido deitar novamente e tentar dormir, já que é o ultimo dia que vou ter antes das aulas começarem. 

                                                                      -                  -                  - 

Minha avó e meu avô fizeram de tudo para que seus filhos fossem bem sucedidos, minha mãe logo ingressou na faculdade de direito e meu tio passou em primeiro lugar pra medicina, com muita dedicação ele se formou e acabou virando um incrível cirurgião plástico, depois de bombar nas redes sociais fazendo nariz de gente famosa, acabou ganhando seu próprio programa em um serviço de streaming. Nunca entendi a obsessão das pessoas com ele, talvez seja a beleza dele, sim, um homem muito bonito, solteiro e bem sucedido, um prato cheio. 

Vovó e eu sempre gostamos do nosso aconchego, mas eu tive que concordar que não dava mais para eu estudar e cuidar da vovó sozinho. No começo ele contratou uma enfermeira, Samantha, uma moça bonita e jovem, cabelos longos e cacheados, ela era um amor, mas meu tio continuava insistindo que ele queria estar mais próximo de nós, mas com o programa dele não tinha como ele se mudar para o interior e ele sabia que aqui na capital iam ter mais oportunidades até mesmo pra mim e melhores tratamentos para vovó. Ele comprou essa casa maior e mais confortável que o apartamento dele no centro e eu juro que esse verão eu vi todos os amigos dele que são médicos especialistas em câncer no pulmão possível passar por aqui, mas a vovó tem resistido como uma guerreira, ainda estando em um estado sem retorno. 

 O dia timidamente começa ficar nublado, eu decido levantar e tomar um banho. 

- Miguel! O café tá na mesa, desce logo! - escuto Odete gritar na porta do meu quarto assim que saio do banheiro.

- Já estou indo. - respondo pegando algumas peças de roupa no armário.

Visto minhas roupas rapidamente, abro a porta e a chuva que ameaçava antes começava a cair timidamente em nosso jardim, vejo que na mesa da cozinha minha avó está aparentemente bem, apesar do tanque de oxigênio, sentada logo ao lado de meu tio que parece apressado. 

- Miguel, bom dia meu querido - diz meu tio com um sorriso gentil - Estava te esperando, para sair, hoje eu tenho um dia cheio. 

- Bom dia tio Ricardo, bom dia vovó - dou um beijo na bochecha da vovó e me sento pegando uma torrada e passando geleia. 

- Amanhã é o grande dia - Minha avó diz lentamente, com sua respiração pesada. - Esse novo colégio vai ser uma oportunidade incrível para você meu Miguel.

- Eu estou animado para os testes de futebol, mas ainda acho crueldade fazer a gente usar aquele uniforme. 

- É só em situações formais, o primeiro dia de aula é importante - Diz meu tio levantando da mesa. Ele beija o rosto da minha avó e aperta meu ombro. - Tenho que concordar que acho o chapéu demais, mas eu quero o seu melhor, quero que tenha melhores oportunidades que eu e minha irmã tivemos. Odete, o café estava uma delicia, não volto para o almoço mas no fim da tarde estou em casa. 

Ele vira e sai apressado. A chuva cai forte, termino minha refeição e recebo junto de Odete a enfermeira que cuida atualmente de minha avó. 

Meu tio tem uma enorme prateleira em seu escritório cheia de livros, aproveito para escolher um e me sento para ler na varanda, ouvindo a chuva cair. 

Assim o dia vai acabando, temos um jantar divertido com todos à mesa, a enfermeira que não me lembro o nome, meu tio cansado e descabelado como nunca apareceria na tv, Odete com seu olhar gentil e minha vovó cansada.

Ao me deitar não consigo pegar no sono. Ansiedade ou euforia? Seja qual for o sentimento não me deixa fechar os olhos. Por mais que eu tente dormir, o vizinho da frente, começa com uma musica alta e gritos, foi assim quase o verão todo. Pego o livro que estava lendo mais cedo e tento ler até pegar no sono.  O que me espera amanhã, será que vou conseguir fazer amigos? 

Enfim, me tira atenção do livro pensar que novamente vou ter que me provar no futebol. Ano passado ganhamos todos os campeonatos da minha região, perdendo apenas um jogo, o que eu não joguei por estar vindo para aqui. 

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