Depois daquele sábado, Feco sumiu.
A gente teve um dia ótimo, almoçamos e jantamos juntos, nós quatro, passamos a tarde estudando e o Feco parecia empenhado com nunca. No fim do dia, depois que a Nicole já tinha ido, ele sugeriu que fossemos jantar num fast food, eu aceitei e logo em seguida ele disse: - Eu não entendo o seu medo.
- Meu medo? - respondi.
- Calma, deixa eu terminar - ele respirou - Eu não entendo seu medo do mar, mas por algum tempo você ficou aqui, perto dele, mesmo que não o veja.
- Aonde você quer ir com isso? - arrumei minha postura na cadeira.
- Eu também tenho muito medos, principalmente o medo de compartilhar meus medos - ele posicionou os ombros na mesa e olhou em meu olhos - Não sei a historia por trás disso, nem sei o que estou falando direito, mas de alguma forma você me ajuda não querer explodir o mundo.
- Isso é bom? Eu acho bom, ainda mais com a fama de arruaceiro que ouvi de você.
- Não é sobre isso, eu quero te ajudar, quero que você não tenha medo do mar. Quero que você possa enfrentar esse medo.
- Você quer ser meu terapeuta? - eu ri.
- Não - ele puxou minha mão e apertou - Eu amo o mar, não é algo ruim, não é algo que você deveria ter medo, é belo.
Eu não entendi o porquê dele dizer isso, mas ele me encarava intensamente com aqueles olhos gigantes e azuis, o cabelo jogado para trás e a camisa meio aberta, mostrando parte de seu peito, ele me parecia muito determinado.
- Tudo bem, mas com uma condição - respondi puxando minha mão suavemente pra fora da dele.
- Eu tenho que me comportar, certo? - ele escorou na cadeira novamente.
Fiz que sim com a cabeça.
- Fechado, eu me comporto e você me deixa te levar ao mar.
E sumiu...
No fim do domingo mandei um "oi" para ele, ele visualizou e não respondeu. Pensei em falar com ele no colégio e ele não apareceu, nem ele, nem Mari, nem Cauê, nem André. Perguntei para Nicole o que tinha acontecido, ela respondeu que nunca tinha acontecido algo assim nos outros anos. Pensei em ir à sua casa, mas me pareceu muita humilhação. Observei da janela e em sua casa tinha pouca movimentação. Assim se passaram três dias.
Na quinta ele apareceu no colégio, ao lado do resto do quarteto. Mais grudado e apaixonado que nunca com Mari, ele mal me olhou quando cheguei. Me senti um idiota completo.
Passei reto, fui ao banheiro e senti uma vontade inexplicável de chorar.
Respirei fundo.
Antes mesmo da minha avó adoecer eu me sentia pouco acolhido pelas pessoas à minha volta. Eu era uma pessoa conhecida por todos, mesmo com todos ao meu lado eu sentia que só gostavam de mim por que eu era o garoto que tinha perdido os pais e vivia com a avó. O Feco só me acolheu, sem me conhecer, sem ser induzido por que sua mãe conhece meu tio ou algo do tipo, mas Nicole me avisou que ele só me queria como pet à sua volta para alimentar o ego ou algo assim.
- Tá tudo bem com você? Ei que cara é essa? - disse Nicole me encontrando quase que imediatamente que eu saio do banheiro - Sua vó tá bem?
- Tá sim, tá tudo ok, só caiu um cisco no meu olho - eu suspirei - é, eu estava tentando tirar.
- Ah, que susto, pensei que tinha acontecido algo ruim - ela me abraçou forte.
Nos treinos de futebol, nas aulas ou até mesmo no grupo de estudos, Feco parecia me evitar. Pensei que não iria ficar me humilhando pela atenção dele, então também o ignorei. Sexta saímos com os meninos do futebol após o treino, Gusta, um dos meninos do time chamou a gente para jogar videogame na casa dele, todos fomos, menos Feco e Cauê.
Em geral eu me dava bem com o time, me sentia incluso e conversava com eles tranquilamente, mas eu também me sentia numa bolha perto deles. Constantemente eles me perguntavam se eu namorava a Nicole, mesmo a Nicole estando com a Olivia desde a festa e todos eles saberem disso. "Olivia? A menina assombrada?" ouvia isso à cada três frases.
No sábado, foi um dia inquietante, vovó passou mal e teve de ir ao hospital, eu não podia ficar lá, mas fui nos horários de visita, felizmente foi só um susto e logo no domingo ela já voltou para casa, ela passou à dormir mais, porém foi só isso que mudou de nossa rotina.
Segunda foi um dia daqueles, não parava de chover, não teve treino, na aula eu só conseguia olha para toda aquela chuva na janela. Peguei chuva indo do colégio até o metro e do metro até em casa. Corri para o quarto, tirei a roupa molhada e tomei um longo banho quente.
Passei um tempo como vovó em seu quarto, vendo uma novela qualquer.
- Você está escuro de novo, eu já te vi assim - ela disse nos comerciais.
- Oi? Como assim?
- Quando sua mãe morreu você ficou assim, quieto, sozinho, sem energia. Quando mudamos para cá eu vi você voltar à ser a criança inocente, alegre e gentil que você era antes, até parecia que tinha esquecido minha doença. Foi por causa que eu passei mal nesse sábado e você lembrou não é? - ela me apertou nos braços.
- Vovó eu nunca esqueci da sua doença, isso me assombra sempre. É só que eu estava conhecendo novos lugares e pessoas, agora não estou mais, mas eu sempre fui quieto.
- Você diz isso pois não lembra quem era antes de tudo acontecer, eu vi acontecer com sua mãe e com você, mas parecia que você tinha escapado e agora você está de novo nessa - ela me olhou com gentileza - Não deixe de viver sua vida por mim ou por seja lá qual for a razão de você estar assim, sei que doeu muito tudo que te aconteceu antes e dói o que vai acontecer no futuro, mas você é jovem, lindo, cheio de oportunidades...
- Vovó, eu tô bem - toquei seu rosto com suavidade - Sei bem que vai acontecer uma hora e mesmo eu achando que estou pronto eu não estou, é só que aconteceram umas coisas essa semana me desgastaram.
- Seu tio quer que você faça terapia, e eu concordo - Ela me interrompeu.
- Não preciso disso, eu estou bem.
- Mas você vai precisar, quando eu partir tenho medo de como você vai lidar com as coisas, você nunca falou comigo ou com ninguém sobre seu pai ou sua mãe. Acho que seu tio está certo.
- Eu estou bem, eu juro, eu só estou um pouco cansado.
- Não discorde de mim, eu vou usar a carta do câncer, eu te peço com meu coração, aceite.
Eu não tinha muito o que discutir, eu realmente precisava daquilo? Não, mas não posso negar o pedido de uma senhora idosa de 80 e poucos anos morrendo de câncer que determinadamente é minha avó.
- Tudo bem, eu vou, mas se eu não gostar posso sair? - disse.
- Tenta, por mim e por você, tenta.
E a novela voltou, ela fez "shiuu" com a boca e voltou à prestar atenção no que acontecia.
Eu deitei nela e aproveitei aquele momento, sabendo que era um dos últimos.
A gente nunca tem essa sensação com outras pessoas mesmo sabendo que pode sim ser o ultimo momento com aquela pessoa, eu poderia sair do quarto dela e ser atingido por um cometa e aquele seria o ultimo momento dela comigo ou ser atropelado no dia seguinte e ela viver muito mais que eu, mas quando a pessoa está no estado que ela está você tem a certeza que aquilo está acabando, com as outras pessoas é sempre um "e se?", com ela era "quando?".
Eu tinha ciência disso, ia ser mais uma pessoa da minha vida que eu ia perder. Eu só perdia as pessoas. Não que eu me importasse tanto com as pessoas do meu colégio anterior, mas vindo para cá eu perdi eles também. Logo seriamos meu tio e eu, meu tio, eu e a futura esposa dele, depois os filhos, em dois anos eu iria para faculdade, será que eu voltaria para cá? Eu teria para onde voltar? No fim era só eu.
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Oceano
Teen FictionMiguel se sente perdido e solitário após se adaptar a uma nova rotina, pelo fato de sua avó estar em estado terminal eles tiveram que se mudar para casa do seu tio na capital, onde ele vai começar uma nova vida em um novo colégio, com novos amigos e...