katniss acordou desnorteada. tateou a cama, à procura de um conforto que não viria, pois peeta havia se levantado há horas. levantar se mostrou uma tarefa árdua quando seu corpo não cooperou com ela, os músculos doloridos após uma noite de sono mal dormida. alguns dias costumavam ser cansativos sem que ela nem soubesse o porquê; doutor aurelius dizia que era parte do processo. a katniss de antes teria dito que esses processos poderiam matar a família dela de fome.
"alguns dias são mais difíceis que outros", ela repetia a si mesma.
— você acordou cedo — ela comentou quando finalmente encontrou peeta, se sentando nos degraus da varanda ao lado dele. ele estava com a cabeça apoiada nos joelhos; quando levantou seus olhos para encontrá-la, katniss notou a bagunça que eram os seus cachos.
ele precisava de um corte de cabelo, ela fez a anotação mental para não se esquecer de amolar a tesoura. mas, além disso, o que mais se destacava era a tristeza no semblante dele. o coração dela palpitou.
às vezes se perguntava se acordaria um dia e ele teria ido para um lugar onde ela não pudesse alcançá-lo; não em vida, ao menos. mas peeta não era como ela, katniss dizia a si mesma. ele não era como ela, e isso lhe dava algum conforto.
— eu não consegui dormir — ele admitiu, sorrindo de canto para o benefício dela, mas ela conseguiu notar que a confissão o envergonhava.
— e decidiu fazer companhia aos gansos do haymitch? — ela perguntou, brincando a fim de ler melhor o humor dele. sabia que a coisa não estava boa, mas queria entender o quão.
ele sorriu sem nem mostrar os dentes: o retorno que ela mais temia. era longe das respostas espirituosas que normalmente obtia dele. longe do "é, eu e o gansos do haymitch já podemos nos considerar ótimos amigos. você precisava ver, nenhum deles tentou me morder hoje."
ficaram em silêncio por um minuto, nenhum dos dois sabia exatamente o que dizer. katniss não queria forçá-lo a compartilhar nada que não quisesse; ele não queria ser um peso para ela e soterrá-la com sentimentos que nem ele entendia.
— eu estou tão cansado, katniss. — ele disse em vez disso, fazendo com que ela catapultasse de volta no tempo. como daquela vez, o cansaço não era apenas mental e ela duvidava que se o pedisse para ir dormir ele a ouviria. não porque ele não quisesse, apenas porque querer não era o suficiente.
— você teve algum flashback? — ela chutou. com o passar dos últimos meses, a terapia e a considerável melhora dele, peeta estava lembrando-se de alguns acontecimentos. tanto dos jogos quanto da vida dele antes disso. mesmo que fosse injusto, katniss preferia que ele não lembrasse. preferia que tudo continuasse enterrado para que ele não tivesse que sofrer duas vezes pelo mesmo motivo.
— eu lembrei do meu aniversário de 16 anos — ele disse. no aniversário dele de 16 anos, eles ainda não se conheciam, então ela não fazia ideia do que exatamente havia acontecido. — da minha mãe — continuou, respirando fundo. e subitamente katniss não precisou saber o que tinha acontecido naquele aniversário, ela apenas soube que tinha sido ruim.
— oh — foi tudo que ela conseguiu dizer. não queria pressioná-lo. o que ela queria era ter tido a oportunidade de ajudá-lo, de fazer por ele tudo o que ele havia feito por ela.
— eu passei o resto da noite sem nem levantar da cama. eu não consegui. eu... eu estava tão triste. e ninguém tentou fazer com que eu levantasse. meus irmãos entraram e saíram do quarto e eles nem... — peeta suspirou. — mas não era culpa deles. também não era culpa dela. acho que às vezes as pessoas não podem evitar ser quem são.
ela jamais defenderia a bruxa da mãe dele, mas ela conseguia entender o porquê de ele dizer aquilo. não era como se ela ou a sua própria mãe escolhessem passar o dia inteiro na cama e negligenciar o mundo; foi algo que aconteceu. ainda assim, uma parte dela não podia evitar pensar que peeta poderia não se sentir órfão mesmo quando sua família estava vivo se apenas...
— você acha que tem algum sentido? — ele questionou de repente, com os olhos cheios de lágrimas ainda não derramadas. — a vida, quero dizer? porque, às vezes, eu sinto como se fosse um maldito desperdício.
katniss o encarou, sentindo seu coração se partir com cada uma das palavras por ele proferidas. como se cada pedacinho de seu corpo se partisse.
— não, eu não acho que tenha sentido. — ela respondeu, pensando em prim. pensando na sua vida há mais ou menos três anos e se sentindo a pior pessoa do mundo por cogitar que os dias em que passava fome foram melhores dos que os atuais onde o maior dos problemas dela era não conseguir ter uma boa noite de sono. — mas não acho que seja um desperdício também. é algo no meio disso.
— algo no meio do sem sentido e do esperdício? — ele perguntou, parecendo achar absurdo demais que duas palavras tão diferentes pudessem estar em polos diametralmente opostos numa mesma frase.
— acho que sim. — ela deu de ombros, olhando para frente. para o dia que amanhecia acima deles, o jardim que se esparramava à frente e os milhares de arrependimentos que ficaram para trás.
era claustrofóbico, como os cilindros na sala de lançamento dos jogos.
— eu acho que eu deveria estar morto. teria sido mais fácil para todo mundo. minha família estaria viva agora. ela estava certa, sabe?
katniss negou veementemente com a cabeça. não sabia quais adjetivos passavam pela cabeça dele, mas sabia que sua mãe nunca fora agradável.
— não, eu aposto que ela não estava. eu aposto que ela não sabia que você faz a minha vida valer a pena ser vivida — ela diz, séria, lembrando-se de uma conversa parecida que tiveram antes. na época, eles estavam na praia, cientes de que nas próximas horas um deles estaria morto. — você lembra de quando eu disse que eu precisava de você? — ela busca os olhos dele, exasperada. ele balança a cabeça em afirmativa, mas há incerteza no gesto. ele não lembra de tudo. katniss engole em seco antes de continuar. — eu disse a verdade. ainda é verdade.
e ela sabia que peeta podia não valorizar a própria vida, mas não havia nada no mundo que ele estimasse mais do que a dela. se isso significava jogar sujo para que ele enxergasse o que ela tão desesperadamente precisava que ele visse, que assim fosse.
ele suspirou outra vez, se achegando para perto dela e enfim deitando no colo de katniss. ele começou a chorar no momento que sua cabeça tocou as pernas cobertas dela. alguns dias eram mais difíceis que outros, ela repetiu a si mesma.
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it would have happened anyway
Fanfictioncoletânea de histórias curtas de everlark que postei no twitter e no tumblr.