O homem quebrado

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No quadragésimo andar, com os pés cruzados sobre a mesa de escritório, Malcon divagava, enquanto as luzes e hologramas enormes da cidade dançavam lá fora, fazendo um show de cores e formas caóticas, tentando desesperadamente banir a escuridão de mais uma noite poluída.

Pegou o prato. O bife ainda estava quente. Era fácil pensar naquilo como carne de verdade enquanto mastigava. Melhor não pensar na quantidade de processos químicos que aquela soja sofreu para chegar nesse ponto. Comeu carne de verdade apenas uma vez, quando o presidente da empresa organizou uma festa para anunciar a promoção de Malcon como um dos associados. Foi como se todo esforço e trabalho de anos fossem recompensados com aquele pedaço de carne.

Olhou a mesa.

Uma boa mesa , pensou. Em estilo rústico, nem parecia ser feita por uma impressora 3d. Lembrou-se do anúncio dela:
" Cuidado ao passar a mão na mesa, pode ter alguma farpa"
A irregularidade dos sulcos, alguns nodos espalhados aqui e ali, a textura... até mesmo... o cheiro! Até o cheiro da madeira eles conseguem imitar!

Imitação. Todos somos grandes imitadores. Escravos da tecnologia que reverencia a natureza e o passado. Como uma garota jovem, cheia de acessórios, que não consegue superar os encantos de uma mulher madura e simples. Mesmo com tantos avanços tecnológicos, ainda haviam coisas que humanóides orgânicos faziam melhor do que as máquinas. Enganar por exemplo. O trabalho publicitário em 2110 provavelmente não era muito diferente de cem anos atrás.

Pague nosso preço, e nós vendemos sua mentira.

Agora mesmo ele estava trabalhando em uma destas mentiras.

"Seja uma versão melhor de si mesmo"

A frase estava boa. Chamava atenção, invocando uma leve esperança... algo de acordo para a Neo Bionics, uma empresa que vende melhorias e implantes cibernéticos.
O que Malcon não gostava era da imagem do homem vitruviano ao fundo.

Preciso falar com o pessoal de criação amanhã de manhã. Até faz sentido, mas a imagem desse homem em tons de verde claro, com metade de seu corpo trocado por partes sintéticas me dá arrepio. Leonardo da Vinci deve estar se revirando. Sem falar que parece uma mentira. Pode ser uma mentira. Mas não pode parecer uma mentira.
Uma versão melhor de si mesmo... mas, e se essa versão melhor for menos humana?
Afinal, o que é ser humano? Ou anão? Ou orc? Ou elfo? Ou goblin...

Espantou-se ao ver que o discreto relógio no canto do monitor holográfico já marcava onze horas. Fechou o arquivo com um gesto displicente e saiu, deixando o computador ligado. A essa hora o prédio já estava quase vazio, então os pequenos robôs de limpeza aproveitavam para fazer seu trabalho. Chutou um deles, se divertindo ao ver ele parar com as rodas para cima, tentando inutilmente se virar. Lembrou-se dos besouros que caem de pernas para cima e até morrem nessa posição porque também não conseguem se virar.

Outra imitação perfeita da natureza

Eu chutei um robô. Ótimo. Logo não serei mais compatível com esse mundo. Aquele pedaço de plástico e metal que eu chutei não tem consciência. Mas com essa recente ascensão das IAs, logo será um crime fazer o que fiz. Robôs conscientes, clamando por direitos, por cidadania... isso que eu fiz logo será considerado como uma lesão corporal.

Tinha a impressão de estar observando um aquário gigante através do vidro no elevador panorâmico. Tantas atrações. Tubarões corporativos, sardinhas assustadas, polvos manipuladores... ao contrário do prédio, lá fora a vida fervilhava.

Vida ?
Ou sobrevida?

Seu trabalho exigia empatia. Entender a maioria, o que querem, o que pensam, o que acham que precisam, o que acham que querem... mas às vezes essa habilidade o deixava desconfortável. Como agora. Ao longe conseguia divisar o muro. Um muro gigante que separava o grande inferno e o pequeno paraíso. Dentro, um complexo planejado de residências, fábricas, lojas, escritórios, restaurantes, clínicas... um pequeno bolsão onde basicamente se encontravam três tipos de gente: ricos, trabalhadores altamente especializados ou(a grande maioria) trabalhadores braçais selecionados e treinados cuidadosamente para compor o time de serviçais deste Éden.
O que incomodava Malcon estava além dos muros. Lá fora a maioria se espremia em favelas, agora chamadas de aglomerados subnormais (mais um eufemismo inútil criado pelo governo, para fazer as coisas parecerem menos feias). As atividades ilegais eram uma saída tentadora, frequentemente tomada por aqueles que recebiam míseros créditos, mesmo vendendo grande parte de seu tempo e força de vida nos empregos regulares.
A demanda por anestesias mentais crescia como um câncer. O uso de drogas sintéticas e imersões prolongadas em RV eram cada vez mais frequentes.

Um futuro estranhoOnde histórias criam vida. Descubra agora