A culpa é das bordas

9 1 0
                                    

Dentro daquele quarto alugado se desenrolava uma tarefa exaustiva, que já havia consumido várias latas de energético, além de inúmeras fatias de pizza. O pequeno frigobar começava a fazer um barulho estranho, como se estivesse reclamando por ter sido esquecido aberto. Toda a decoração impessoal de cores e objetos mortos comprados em alguma grande loja de departamentos, parecia observar com desdém o esforço dos dois hóspedes, unidos brevemente pelo desejo comum de vencer o desafio diante deles. E mais uma vez a mesma frase era proferida:

Os objetos de pesquisa estão prontos.

Hum... não, não. Falta alguma coisa. Mais uma vez.

Os objetos de pesquisa estão prontos.

Tente ser um pouco mais... frio.

Os objetos de pesquisa estão prontos.

Está forçando muito. Mais natural.

Aerin suspirou, soprando para fora um pouco de seu aborrecimento.

Malcon. Você não come as bordas?

O quê?

As bordas. Da pizza. Você não come?

O que isso tem a ver?

É por isso que o mundo está assim. Por causa de pessoas como você, que não comem as bordas.

Foco.

Sério? Já está bom, não está? Não vou precisar enganar ninguém por muito tempo.

Precisa estar perfeito. Se você falhar, o plano vai ser arruinado logo no início. Nosso tempo é curto. Meu contato do controle de acesso será transferido em breve. Temos no máximo mais quinze dias.

Quinze dias para eu me transformar numa cópia perfeita do Dr. Gregor Sanger.

Cópia não. Você precisa ser ele. Em tudo. Nós já progredimos bastante. Você já dominou o sotaque britânico, a postura levemente curvada, o tique de morder os lábios... é claro que seria impossível fingir todo conhecimento que ele possui. Mas como você disse, não será preciso enganar ninguém durante muito tempo. Então esses estudos básicos sobre genética e nanotecnologia devem bastar para uma conversa superficial de cinco minutos, caso essa conversa aconteça.

Nós progredimos bastante não. Eu progredi. Você só fica aí sentado, dando palpites, bancando o diretor de teatro.

Eu trabalhei muito com gerenciamento de personalidades em recursos humanos. Não é tão diferente. Nosso amigo doutor é um introvertido, sensorial, racional e julgador.
Ele reflete muito antes de fazer qualquer coisa, só acredita em informações concretas, valoriza a prática da lógica objetiva e segue regras estabelecidas por meio de procedimentos com eficácia comprovada.

Um completo babaca resumindo. Me surpreende sua seriedade nesse negócio Malcon. Faz dias que não ouço nenhum comentário irônico.

A ironia me faz relaxar. Nessa tarefa eu não posso relaxar. Nem você.

Tá bom, tá certo. Eu acho que só falta... assimilar melhor essa tal frieza. Acho que estou quase entendendo o ponto onde preciso chegar.

Eu sei porque está sendo difícil.

Ah é? Por que?

Malcon foi até a janela, da mesma forma que fizera tantas vezes, em tantas janelas, deixando seu olhar vagar. Estavam no quinto andar do hotel, então era possível ver com detalhes todos andando apressados lá embaixo na rua, indo, vindo, se esbarrando, absortos em seus próprios problemas, pressionados por um fluxo invisível de necessidades fabricadas e desejos sem sentido. Então começou a falar, como alguém sozinho pensando alto:

Esse mundo tá uma merda. É claro que diante disso, todos tentam se defender. Se preservar. Seja do ladrão escondido nas sombras de um beco, ou do câncer carregado pela comida cada vez mais artificial, que parece vir com a morte estampada em forma de código de barras. Virtudes consideradas desde sempre como um ideal a ser buscado, ficam cada vez mais distantes, mais difíceis de se entender e assimilar. Amor, amizade, compaixão... tiveram seu significado deturpado, corrompido por desejos de ganho pessoal.
As megacorporações não são apenas donas de um enorme território, de empresas, capital e meios de produção, mas também donas das pessoas e de seus sonhos.
"Fazer do mundo um lugar melhor "
Melhor para quem?

Respirou longamente como se pisasse no freio para impedir a raiva de jogar seus sentidos fora da curva.

Me diga Aerin, qual sua história?

Eu não vou te contar minha história.

Me conte de forma genérica. Sem detalhes.

E lançando um sorriso predatório:

Omita qualquer informação que eu possa usar contra você.

O elfo avaliou o pedido por um momento, como quem decide se atravessa ou não uma ponte cheia de buracos.

Bom, digamos que eu resolvi sair do lugar onde vivia com minha família, desde então vivo por mim mesmo.

O desejo de liberdade foi mais forte?

Eu... sei lá, eu só queria fazer as coisas do meu jeito. A vida era boa lá. Não precisava me preocupar com nada. Mas não podia escolher ou decidir nada também.

Entendo. Você saiu de lá, porque sentiu necessidade de fugir de um sistema. Aqui você nem sabe de onde virá sua próxima fonte de sustento, mas está livre para se dar bem, ou se ferrar. O único limite é sua consciência de certo ou errado. De bom ou mau.
Esse cara mastiga a ética como se fosse um chiclete, cospe ela no chão e vai embora.
Esse doutor é nojento aos seus olhos, porque cada fibra dele defende um sistema que privilegia poucos. Talvez não muito diferente do sistema onde você vivia antes.
Eu te entendo. Pensar em ser ele me dá ânsia, mesmo que seja só uma atuação.
Ele vive de acordo com regras, se sente superior quando passa por trabalhadores comuns e lambe o saco de qualquer um acima dele.
É esse o mundo que esse escroto defende.

Mas de tudo isso, o que mais fode nesse mundo não são as bordas deixadas na caixa da pizza. É a frieza. A indiferença.
Me dê ódio, me dê tristeza, me dê um soco na cara, me dê qualquer coisa, mas me dê!
A frieza, a indiferença, são o vazio. O nada. Quem as recebe fica vazio. Quem as pratica também. Elas são nosso maior medo, embora muitos não estejam cientes disso.
Por isso, mesmo inconscientemente, tentamos evitá-las. É por isso que sua atuação ainda não está pronta, Aerin. Você, assim como qualquer um, prefere fingir isso, sem se entregar por completo.
Abrace. Sinta. Seja esse vazio.

Aerin se permitiu absorver toda densidade daquelas palavras antes de dizer:

Então... devemos continuar?

Sim.

O elfo pigarreou para clarear a voz:

Os objetos de pesquisa estão prontos...

Um futuro estranhoOnde histórias criam vida. Descubra agora