Depreciação

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Quantidade de palavras: 2.407
Indicação: Livre

Já passava das 11:30 quando Natalia entrou em um dos restaurantes de brunch mais famosos de São Paulo. Ela aparentava cansaço, tinha longas olheiras, o cabelo estava preso em um rabo de cavalo frouxo e a roupa um tanto amassada.
Devido ao tempo corrido, as amigas não se viam há mais de um mês, ainda assim a mudança drástica na aparência de Natalia provocou um alerta nas outras três integrantes da mesa.
- Garota! Achei que não ia nos dar a honra - Debochou Callie que já bebericava seu expresso.
- Desculpa meninas, tive que vir de trem. - Natalia se acomodou ao lado de Alessandra.
- O que houve com o seu carro? - Questionou Camila antes de tomar mais um gole de sua mimosa.
- Alex está usando, o dele foi para oficinal - Respondeu Natalia, distraída enquanto olhava o cardápio.
- Espera ai! Ele está usando seu carro em um sábado? E nem se prontificou a te trazer? - Camila já estava terminando sua segunda bebida daquela manhã, em outra ocasião ela não teria se metido em relacionamento alheio (até porque o seu não era dos melhores) mas naquele momento, desinibida pelo álcool, não conseguiu segurar a língua.
- Aí Cami, ele precisou, ok? Não vi mal algum em vim de trem e não quis arrumar uma briga. Eu até pensei em pedir para ele me trazer, mas vocês sabem que odeio pedir as coisas...
- As coisas? É o seu carro! Seria obrigação dele te trazer.
- Eu sei amiga, mas você sabe como o Alex é... Tudo isso é complicado e estou cansada.
- Então deveria terminar com ele. Vocês estão juntos a mais de quatro anos e ele te trata muito mal! Você merece muito mais. Ele te acanha tanto, que faz você achar que estão no primeiro mês de namoro e não pode nem pedir favores para ele. Falo isso de coração, ele é tóxico e abusivo.
Com a chegada do garçom para anotar o pedido de Natalia, a conversa acabou se acalmando, até ele se retirar para buscar o cappuccino dela.
- Olha, eu sei que vocês acham que eu não deveria estar com o Alex, eu também acharia isso se tivesse no lugar de vocês, mas as coisas quando estamos juntos é diferente. Não é sempre que ele me trata assim, muito pelo contrário, temos dias muito bons e eu sei que ainda vale a pena, nos amamos e estamos dando nosso melhor. Todos temos problemas né? Exemplo da Callie, ela está a 3 anos com o Junior e faz quanto tempo que ele não arruma emprego? Dois anos e meio? - Callie concordou com a cabeça enquanto mexia na sua omelete, meio sem graça - E ela ainda acredita nele. É isso que a gente faz, acreditamos.
- Eu sei, não estou dizendo que os relacionamentos não tenham problemas, muito pelo contrário. Eu vivo passando sufoco com o Rodrigo. Acredita que mês passado ele esqueceu nosso aniversário de 5 anos? Ele não disse nada nem quando fiquei ruiva! Não posta nada bonito nas redes sociais... Porra! Ele nem me diz coisas bonitas. É sempre enfiado naquele videogame e quando eu tento planejar algo legal para a gente, levo um bolo porque "vai ter algum campeonato babaca disso". A única coisa que ainda fazemos juntos é ver algum filme e transar uma vez na semana.
Alessandra que continuava quieta bebendo seu suco, acabou soltando o ar forte demais fazendo com que a atenção se voltasse a ela.
- Está tudo bem, Ale? - Perguntou Callie, deixando sua omelete de lado.
- Ah meninas! Eu não transo a quase um mês e a última vez nem foi tão boa assim. Eu nem gozei e o Lucio não se importou. Fez o que tinha de fazer, virou e dormiu. Nesses dias, começamos a nos beijar e eu achei que ia rolar, comecei a fazer um oral nele, pensando que era preliminar, mas no fim ele só me vez ficar lá embaixo, gozou e foi dormir. É tão deprimente! E quando penso em fazer algo sexy para apimentar as coisas, ele fura comigo para sair com os amigos.
- Meu Deus Ale!! E ele continua fazendo aquelas viagens no final de semana?
- Sim. Achei que era uma fase, sabe? Afinal, se mudar não é fácil, entendo ele sentir falta dos amigos..., mas, faz mais de um ano! E cada vez mais ele está me trocando. Faz planos sem mim e eu só queria participar. Nem conheço os amigos dele! Parece que ele faz isso de propósito, justamente me separando da vida social dele. Eu me sinto deslocada, porque estou sempre colocando ele nos meus planos, ele conhece todos os meus amigos e eu não conheço nem 1% dos dele.
- Vocês já conversaram sobre?
- Já tentei, mas sempre surge o assunto de confiança e ele diz que é coisa da minha cabeça, que não é sempre que ele está lá, que ele só vê os amigos algumas vezes e passa mais tempo comigo... Essas coisas. E eu entendo, ele realmente passa mais tempo comigo, mas sinto que não é porque ele quer e sim se ele pudesse só me veria por chamada de vídeo e olhe lá. - Nesse momento os olhos de Alessandra encheram de lágrimas e todas as amigas acolheram suas mãos e sussurraram que tudo ia ficar bem e que estavam lá por ela.
Em um lapso, perceberam juntas que os relacionamentos delas estavam longe de serem perfeitos ou até mesmo saudáveis. Se seguiu minutos de silêncio, onde elas avaliavam suas vidas e engoliam a pergunta "Porque contínuo nisso?", foi Callie que falou, meio envergonhada, mas lembrando que eram suas melhores amigas.
- Eu não sei vocês, mas estou cansada. Fico repassando minha relação, o começo dela, onde o Junior me tratava com uma rainha, levava chocolate quando íamos nos encontrar, comprava presentes só porque tinha lembrado de mim quando viu na vitrine... Até flores ele já me deu. E aí tudo se perdeu no ar. Ele entrou naquela bolha de autodepreciação quando perdeu o emprego e foi se afundando cada vez mais. Me senti mal por pressionar, ainda mais quando ele começou fazer terapia e a profissional disse que ele tinha um problema psicológico..., mas já faz dois anos! Eu trabalho o dia todo, pago as contas e ainda tenho que ficar dando dinheiro para o meu namorado! Eu virei a porra da mãe dele. E agora ele conheceu essa menina no consultório da psicóloga e nem me conta mais as coisas. Eu sou só o banco dele, é isso, virei a merda de um caixa eletrônico! E quando eu avalio os prós e contra eu percebo que tem mais contras. Então por que só não consigo deixar ele?
- Porque você o ama. - Foi uma observação que estava clara para todas elas, mas quem disse em voz alta foi a Natalia. - É assim que me sinto com Alex. Eu o amo, então na hora da raiva me dá uma vontade de jogar tudo para o ar, mas aí eu chego em casa, vejo ele e tudo vai embora, como se fosse uma página em branco de novo. Lembro das nossas viagens, dos olhares apaixonados, das promessas de amor e em como sonhávamos em construir uma família juntos e eu não sei se vou encontrar isso em outra pessoa e quando eu peso as coisas percebo que não me importo dele me tratar meio mal quando está estressado, eu sei que ele não faz de propósito...
- Olha amiga, desculpa, eu entendo você ter esses sentimentos de comodismo em relação ao que vocês já viveram, mas o Alex é péssimo! Ele tira todo seu brilho. Não estou desfazendo o que vocês já viveram juntos, mas lembra todas as vezes que você tentou falar com ele sobre como estava se sentindo e ele não se preocupou em te escutar. Quando seu pai ficou internado, ele não teve um pingo de solidariedade por você. É como se você sempre tivesse lá para ele, mas quando você precisa dele, ele não faz nem o mínimo.
- É complicando quando você não vive a relação, Cami. De um lado você diz que o meu relacionamento é tóxico, mas será que o seu também, não é? Afinal, viver em uma relação em que a pessoa não liga para você e sempre te coloca em segunda plano, é saudável? Só temos maneiras diferente de encarar isso, pois estamos dentro de uma bolha criada por nós mesmas.
Ali, evidente, estava a concretização e a aceitação de que se dependesse delas, talvez não fossem a lugar nenhum com suas relações. Não estavam prontas para largar seus parceiros e muito menos a vida de pessoa comprometida, ainda que insatisfeitas, não tinham coragem de se jogar na vida de solteira.
Quatro vidas entrelaçadas e fardadas a seguirem suas jornadas implorando por migalhas de felicidade pelo medo de ficarem sozinhas caso tomassem a decisão de colocar fim em seus relacionamentos. Pensavam que, ainda que imperfeitos, pelo menos elas tinham um.
E assim prosseguiram durantes meses, algumas até por anos, mas como em uma relação existe mais de uma pessoa, ignoraram o fato de que talvez mesmo que estivessem dispostas a aturarem a situação em nome do amor, os seus companheiros não teriam esse mesmo pensamento, e assim ocorreu, afundadas em sua autodepreciação, foram deixadas da pior forma por aqueles que estavam dispostas a sacrificarem uma vida de felicidade somente para continuar aos seus lados.
Primeiro foi a Camila que de tanto se questionar sobre o andar da carruagem de sua relação, começou a colocar Rodrigo contra a parede e isso foi demais para ele, que estava acostumado a não ser pressionado e cobrado por ela. Em uma quinta-feira, deitada olhando para o teto e escutando o tec tec do teclar dos dedos de Rodrigo contra o teclado, não aguentou, levantou e tirou o enorme fone de ouvido que estava encaixado na cabeça dele e começou a falar. Liberou tudo que sentia, em como ele era ingrato e não se importava com ela e que não estava fazendo o papel de namorado. Com isso ela esperava que ele acordasse e começasse fazer por onde, mas foi surpreendida com um simples "Se não está satisfeita, então vai embora". E ela foi esperando que ele fosse atrás dela, mas isso nunca aconteceu.
Depois de alguns meses foi a vez de Alessandra, que ao descobrir uma traição de Lucio, decidiu perdoá-lo e seguir em frente, mas como algumas pessoas dizem, uma vez que traiu sempre vai trair, e depois da primeira descoberta foi fácil descobrir as outras. Ela juntou o quebra cabeça e entendeu o motivo que fazia com que o namorado não a envolvesse em sua vida social, era mais fácil ser infiel longe do olhar da namorada. Mesmo com as intermináveis descobertas da inconfidência, ela aceitava o discurso de que "Foi só um erro" e "Nunca mais vou fazer isso" e perdoava-o. Com o tempo ela se acostumou e aprendeu a tirar o lado bom daquilo, afinal, sempre que ela o descobria e afrontava, no final ela vivia dias e mais dias sendo profundamente amada e paparicada, até a poeira baixa e acontecer tudo de novo. Ela começou a precificar aquilo e na sua cabeça, ser traída, era um preço justo a se pagar para ter um pouco de amor. Entretanto em determinado momento, Lúcio percebeu que aquilo não valia mais para ele e com vários de seus amigos solteiros saindo para farra de segunda a segunda, decidiu largar Alessandra, sem nem ao menos explicar o porquê.
Já com Callie foi menos clichê. Ela tentou com todas as suas forças se distanciar de Junior ou ser menos caridosa com ele. Não adiantava, ela tinha configurado aquela assistência psicológica, financeira e materna como algo normal da relação deles. E uma vez que aquilo se enraíza, é difícil desfazer a dependência. Com o tempo ela começou até a pagar às futilidades que Junior queria para se entreter, justificando sempre como um ato de amor. Ela entregava o mundo para Junior, já ele, com o passar do tempo foi entregando cada vez menos para ela. Ficou distante, aéreo e desinteressado, até sumir. E quando digo sumir, é isso mesmo, desapareceu. Um dia Callie chegou em casa e ele não estava lá, esperou horas, depois dias, nada. Ligou para amigos, familiares e todos falaram que ele precisava de um tempo "para se encontrar", mas que estava bem, e que mantinha contato com todos eles, menos com ela. Quando se passou meses, Callie entendeu que o tempo que ele precisava não era do mundo, mas era dela, ele queria tirar um tempo dela. Passou um ano até ela cair na real de que havia passado por um dos piores términos que existem, aquele que você passa anos com a pessoa, compartilhando coisas e quando ela não quer mais, some sem te deixar uma carta, um adeus, só te deixando dor e pensamentos confusos.
Em um dia de domingo, entediada subindo a tela de seu celular, encarou aquele rosto sorridente pousando levemente para uma foto com um fundo brilhante e florido, ao lado de alguns conhecidos e de uma mulher vestida de noiva. Não conseguiu nem respirar, só entrou em todos os perfis que pôde e descobriu que o seu Junior, que tinha se apoderado de sua vida como uma parasita, estava casado com a menina que conhecerá no consultório da psicóloga que inclusive, Callie que pagava as consultas semanais. Sobretudo, não somente casado, mas empregado em uma empresa de tecnologia que estava em seu auge ganhando bilhões.
Natalia foi a última a viver sua desilusão. Acreditando fielmente em seu conto de fada projetado, ela se casou com Alex, mesmo com os protestos de suas vozes internas. Com o matrimônio veio a ansiedade, desavenças, choros abafados no banheiro e uma gravidez. Depois de tanto pestanejar e desviar dos obstáculos, encontrou um amparo na bebida. Começou com algumas taças de vinho, depois foram bebidas mais fortes, um dia sem perceber estava colocando uma tequila ao lado do biscoito do filho no carrinho do supermercado. Os maltrados psicológicos do marido, levou-a beber e a bebida fez com que fosse demitida do emprego e virasse uma mãe negligente. Com o tempo, o marido não reconheceu que ele era um dos principais culpado por sua indignidade, ao contrário, tirou o pouco que ela ainda tinha, primeiro com o divórcio, depois com a guarda do filho e por fim ainda levou sua última garrafa de vodka que estava na dispensa.

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⏰ Última atualização: Jan 28, 2022 ⏰

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