Conto livre
📚 Em breve publicado fisicamente 📚
Era confortável sentar naquela pequena pracinha após anos. Me sentia desolada por não ter companhia melhor a não ser a minha própria, mas de longe podia ver a pequena oficina, o mercadinho de Dona Rita e a minúscula casa que por anos abrigou os 9 membros de minha família. Aquele cenário - intocável pelo tempo - me remetia a tantas lembranças que a realidade atual parecia distorcida.
Avistei com curiosidade alguém saindo da casa amarelinha com janela de madeira. A menina segurava com força um celular contra a orelha e lágrimas desciam de seus olhos. Observei-a com curiosidade quase materna pois lembrava muito uma de minhas filhas. Depois de minutos em pé dialogando furiosamente com alguém por trás daquela tela brilhosa, ela finalmente colocou o celular no bolso e caminhou furiosamente até um banco próximo ao meu. Senti a necessidade de me aproximar me instigando e fui até seu encontro. Você sabe o quão curiosa e intrometida posso ser, então após me apresentar e descobrir que seu nome era Amanda, questionei-a se poderia ajudá-la.
Foi nisso que desabou a chorar! Disse-me que havia descoberto há poucos instantes que carregava um bebê! O namorado, que antes era seu vizinho, havia se mudado recentemente para uma cidade que era a mais de duas horas de viagem e quando ligou para contar a novidade o mesmo já começou o assunto terminando tudo com ela. Disse que a distância iria dificultar toda a relação e desligou o telefone. Amanda me contou que estava perdida e que tudo que queria era poder sumir. Consolei-a, pois naquela altura já a via como uma de minhas filhas e ela não deveria ter mais que 20 anos. Foi nesse momento que tomei a iniciativa de contar a nossa história.
- Permite contar uma história, Amanda? - Ela olhou em sua volta como se tentasse adivinhar que horas eram, a tarde havia iniciado agora e decidindo se tinha tempo, concordou. - Prometo tentar ser breve, mas tenho que contar que é uma história que percorreu quase 50 anos.
"Quando tinha meus 13 anos passando na frente daquela oficina tinha um moço que sempre mexia comigo. Sem dar bola, um dia ele parou na minha frente e disse que me acompanharia até em casa. Sua ousadia me assustou, mas tinha um certo interesse físico no mesmo então permiti. Depois da primeira vez, ele acompanhou-me até o dia que pediu minha mão em casamento ao meu pai.
Tinha 15 anos na época, porém meu pai recusou a proposta pois queria que me casasse com um de seus amigos, que tinha bem mais idade que eu.
Fui rebelde e não aceitei. Cheguei para o meu pretendido e disse que nunca o amaria, pois, meu coração era de Pedro e aquele casamento seria baseado em mentiras. De alguma forma convenci-o, até que desfez o casamento imediatamente. Acreditei que estaria livre para me casar com aquele que tinha meu coração. Quando novamente veio pedir minha mão houve um acordo com o meu pai que ele iria para São Paulo arrumar um emprego e quando estivesse estabilizado poderíamos marcar a cerimônia. Ele foi com a promessa de que voltaria. Todas as cartas que recebi durante esse tempo estão aqui em minhas mãos junto com algumas fotos dele. Foi tudo que havia me sobrado, pois depois de um ano em São Paulo, recebi uma carta que dizia que não podíamos mais manter contato. Breve, sem justificativa ou desculpas. Meu coração ferido não teve nem tempo de sentir sua dor, pois estava no auge da minha mocidade e precisava ajudar em casa por ser a mais velha dos irmãos. Fui procurar na casa de seus parentes, respostas, pois nem Pedro me direcionava mais correspondências. Todos fingiam-se mudos para os acontecimentos e somente uma prima, que tinha muita consideração com a minha pessoa, foi que me contou que ele estava pretendido para outra prima que tinha uma quantia de herança. Iriam se casar em breve.
Depois disso me obriguei a tirar Pedro da mente. Fui bem, me formei em enfermagem, fui morar em São Paulo para melhores oportunidades e tentei viver minha vida. Ela não tinha cor, sabe? Tentava me atarefar o máximo possível, mas se não me vigiava direito, era Pedro quem invadia meus pensamentos.
Conheci um homem no hospital que trabalhava. Namoramos durante um ano e ele me pediu em casamento, já estava com meus 35 anos então aceitei. Gostava dele, era boa pinta, inteligente, divertido. Confesso que havia me apaixonado, mas não sei se o amava. Futuramente ele se tornaria o pai das minhas duas filhas, meus bens mais preciosos. Então no fim não tenho arrependimentos da decisão que tomei. Duas semanas antes do meu casamento recebi um telefonema no hospital que trabalhava. Já fazia 15 anos que morava em São Paulo e tinha abandonado a vida aqui na Bahia para trás, então fui surpreendida quando a voz masculina do outro lado se apresentou como Pedro de Paulo Afonso.
Disse que depois de pesquisar bastante havia descoberto onde eu trabalhava e que precisava se encontrar comigo. Nessa hora meu noivo apareceu e parou do meu lado e precisei me conter nas minhas respostas mesmo com o coração pulando dentro do peito. Respondi brevemente que me casaria e foi quando o tom de súplica na voz de Pedro apareceu.
- Você não pode se casar com ninguém. Você me ama Nice e não pode negar esse amor. Por favor, me dê outra chance. Não vou aceitar seu não por aqui antes que possamos nos ver. Me encontre na estação do centro, no sábado às 14:00 horas. Estarei te aguardando.
Mesmo com todo o impulso irracional que eu tive, ainda assim não fui encontrá-lo. Me casei e nunca mais ouvi falar de Pedro.
Meu casamento foi conturbado, como disse tive duas lindas filhas, mas logo nos primeiros anos de casamento meu marido teve problemas com álcool, deixou de trabalhar e se tornou violento. Pelas minhas filhas não o larguei e sendo sincera, nem saberia como. Fui tamanho infeliz no casamento, mas a felicidade de ser mãe compensava a outra e foram elas que trouxeram cor para minha vida.
Durante anos foi só nós três tentando lutar contra a bebedeira de quem deveria ser nosso protetor dentro de casa. Há cinco anos fiquei viúva. Câncer no pulmão pelos anos fumando. Não posso negar que fiquei aliviada pelo peso que foi tirado de minhas costas, mas senti pelos anos juntos que gostaria que tivéssemos sido felizes.
Depois de dois anos que perdi meu marido, uma de minhas filhas encontrou essas cartas e me perguntou a respeito. Em uma tarde de domingo com minhas filhas a mesa e tomando um café, contei a história de Pedro. A minha filha mais romântica ficou encantada com a história e sem me comunicar relatou-a em vários grupos de uma rede social. Inesperadamente a filha de Pedro encontrou os relatos e fez o contato com a minha filha. Conversaram durante um tempo planejando um encontro quase a cegas até que finalmente minha filha veio me confessar o que havia tramado. Confesso que o primeiro sentimento que tive era de sair correndo! Imagina só, eu com meus mais de 60 anos encontrar meu grande amor? Neguei instantaneamente. Não poderia vê-lo.
Então minha filha encontrou um meio menos perigoso e fizemos uma ligação. Conversamos timidamente no primeiro contato, porém com a frequência tudo ficou mais fluído.
Falamos sobre nossas famílias e empregos e o rumo que nossas vidas tomaram. Descobri que a mulher dele também havia falecido por um câncer de mama. Disse que havia se aposentado depois de trabalhar anos na logística de uma multinacional. Elogiou minha família a qual havia visto fotos nessa tal de rede social e claro, disse que os anos haviam me feito bem. Ele continuava galanteador. Só o cabelo que antes ficava caído sobre os olhos, agora estavam ralos na cabeça.
Conversamos um dia por vídeo e depois de alguns meses decidimos marcar um encontro junto das nossas meninas que haviam sido nossas cupidas.
Quando avistei ele com uma camisa vermelha e jeans simples, lembro que retornei ao dia em que ele se aproximou de mim pela primeira vez. O cabelo estava ralo e dava para perceber que o pintava de preto e agora usava óculos. Deu-me um sorriso amarelado e me abraçou.
Meu coração brevemente apitou no peito como se tivesse sido ligado na tomada depois de tantos anos.
Acredito que naquele momento nos apaixonamos de novo.
Contou-me então os motivos de não ter voltado. Disse que teve vergonha pois não encontrava nenhum emprego decente e no meio do processo essa prima apareceu. Ele havia desistido de ser digno de pedir minha mão ao meu pai então viveu com esse peso. Casou-se com ela e tiveram uma filha, mas não foi feliz em seu casamento. Quando me ligou naquela época estava quase se separando, mas depois que não apareci ele manteve seu casamento. Confessou que pensou em mim durante todos aqueles anos e foi um tormento.
Assumo para você, Amanda, que se mais nova e ele justificasse seus atos não o aceitaria pois era tamanha orgulhosa, mas o milagre que me parecia toda aquela nossa trajetória não me permitia ignorar o amor que sentia por ele.
Ficamos juntos durante dois anos e infelizmente ele me deixou após um infarto. Antes disso tínhamos viagem marcada para visitarmos nosso passado e por isso estou aqui e sinto que ele está aqui comigo também.
Não subestime o amor, minha flor. O homem que amei não se tornou o pai das minhas filhas e agora nenhum tempo parece suficiente para tê-lo ao meu lado, mas sou grata ao tempo que recebi. O amor não é qualitativo ou quantitativo, ele é uma força maior e tem suas próprias regras."
Preciso dizer, meu querido Pedro, que não sei se nossa história ajudou Amanda de alguma forma depois que a deixei quase naquele finzinho de tarde, mas precisava lhe contar sobre minha pequena façanha nesse cenário, que por tempos foi o cenário de nosso amor. Brevemente escrevo essa última carta e espero que chegue até vós. A nossa carta.
Para sempre sua,
Nice.
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Descodificado
Short StoryContos baseados em histórias reais trazendo átona vivências e convivências. E ai, Tu conta ou eu conto? ** Campeão Geral do concurso Curtas&Boas ** ** Terceiro lugar no concurso Carmina Burana com o conto "Prazer" **