Sistema Sistemático

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Esse conto contém #violência #gírias
#drogas

Estava com sorte naquela noite. O DJ provavelmente não sabia, mas aquela playlist tinha sido feita para ela. Já estava dançando a mais de uma hora com o copo vazio pois não tinha tido oportunidade ainda de se dirigir ao bar para mais uma rodada e não importava, sua cabeça já estava rodando com o pouco de álcool e a euforia dos movimentos que estava fazendo. Tinha se esquecido o que tinha passado naquela loja do shopping mais cedo, motivo principal pelo qual já havia virado três copos de vodka com energético. Finalmente houve uma mudança na batida e iniciou uma música que ela desconhecia, era sua deixa para pegar mais bebida.

Já era três da matina a pior hora para ir pegar bebida, aglomeração era enorme e basicamente você tinha que se despir na frente do barman para conseguir uma dose de álcool. Ela respirou fundo, aproveitou que era desprovida de altura e se enfiou no meio de toda aquela gente. Atravessou o suor, as mãos bobas, as puxadas de cabelo e vitoriosa conseguiu um espaço visível no balcão. Cinco minutos depois estava se desviando da multidão concentrada demais para não derrubar o conteúdo do copo. Ela precisava beber, incontestavelmente. Enquanto aguardava sua bebida relembrou a humilhação naquela loja e depois a humilhação na sua própria casa! E pensar que ela só queria comprar um rímel...

Tomou sua bebida como se fosse água sentindo o familiar e tranquilizador gosto amargo, foi pegar outra bebida. E mais outra. E depois esqueceu as bebidas por motivos óbvios, já estava bêbada.

- Quer falar sobre isso? - Olhou para sua melhor amiga e ponderou sobre. Ela queria falar sobre isso? - Vai se sentir melhor se falar.

E ela sabia que a amiga tinha razão, se sentiria melhor.

Então desatinou a falar. Contou que tinha ido à loja de cosméticos daquele shopping na Zona Sul sozinha e assim que entrou na loja havia sido perseguida pelos vendedores, constrangida saiu da loja sem comprar nada, aquilo tudo tinha desestabilizado ela de uma forma desconcertante. Quando chegou em casa só queria desabafar com alguém que ficaria do seu lado. Relatou para sua mãe os acontecimentos e o que ouviu de resposta foi pior do que os fatos em si. Com os olhos marejados escutou sua mãe dizer "E você queria o que? Fica andando com esse cabelo desgrenhado desse jeito e essas roupas. Parece que esquece que é preta." E agora ela estava enfornada naquela balada meia boca tomando bebidas sem procedência e utilizando todos os ingredientes necessários para ter uma bela ressaca no outro dia.

- Quer fumar um? - Ela queria muito fumar.

Ultimamente ela estava fumando demais. A maconha aliviava seus pensamentos desalinhados e tornava os problemas menos... Problemas. Ela tinha passado por coisa demais nos últimos dois anos. Sua vó morreu, foi abusada sexualmente na porta de casa por um louco e na cereja do bolo foi enganada pelo seu ex que dizia que colocava camisinha, mas aparentemente era tudo mentira uma vez que ela tinha sofrido um aborto no banheiro de casa sozinha e sem saber o que estava acontecendo. Essa última parte não havia contado para ninguém.

A vida por si só já era difícil com todos os vaivéns, os problemas internos e externos que ela sabia que todos possuíam, mas era ainda pior para uma mulher preta e periférica. O que podia fazer se nem sua família a apoiava?

Na segunda-feira procurou um resíduo da sua erva pessoal, mas havia acabado. Teria que sair para comprar mais. Infelizmente para ela o fornecedor das redondezas não estava no seu ponto corriqueiro. A aflição de ficar sem sua válvula de escape atingiu seu peito e sua ansiedade ameaçou surgir para atormentá-la. Decidiu caminhar para arejar a cabeça. Passou por alguns pontos até desatar em uma praça um tanto deserda. Aproveitou para acender um cigarro e com os fones de ouvido se libertar das amarras da ansiedade. Seus devaneios são interrompidos por alguém tocando seu ombro. Olhou para aquele rosto que nunca havia visto antes e que seria facilmente esquecível por ser tão padronizado socialmente. Sua boca está movendo... Ela retira o fone para ouvi-lo.

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