Conto livre, sem restrições.
- carta aberta a quem interessar-
Pseudônimo: Ana Paula Prestes
Dez meses atrás, exatamente no dia 21 de setembro de 2019 vestia meu jeans rasgado, uma regata e passava um pouco de maquiagem. O dia estava lindo. Era calor, mas nada assustadoramente ardente, um calor proposital para se usar óculos escuro.
Havia combinado comigo mesma que não criaria expectativa e não ficaria ansiosa. Não era um encontro, longe disso. Íamos somente tratar de necessidades fisiológicas, apenas sexo. Beber uma (ou algumas) cervejas em uma tarde de sábado e depois se enfiar em qualquer motel, fazer o que tinha que ser feito e pronto, nada de mensagem no outro dia perguntando se estava tudo bem. Casual.
Foi o que aconteceu... Em partes.
Respeitamos a casualidade, nada de mensagem, cobrança e no trabalho era imperceptível que tinha acontecido algo, éramos estritamente profissionais. Não tinha intenção de me apaixonar e muito menos me envolver romanticamente com alguém. Havia saído a pouco mais de dois anos de um relacionamento totalmente tóxico e abusivo, por sorte a experiência negativa havia me impulsionado a encontrar minha voz e jurar que nunca mais deixaria alguém se sobrepor acima de mim. Amadurecimento, eu diria.
Infelizmente nosso corpo se pondera de algumas necessidades... Sexo era uma delas.
Passou-se três meses até que decidíssemos marcar uma nova transa. Dessa vez pegamos um pernoite e bebemos no motel. Conversamos sobre algumas coisas rasas e tudo seguiu aos conformes. Sem sentimentalismo, rimos, conversamos e transamos. Estava entusiasmada com a oportunidade de ter aquilo. Sexo sem compromisso e uma companhia bacana para passar algumas horas. Depois da minha relação abusiva algumas inseguranças se criaram ao meu redor, a mais massiva era a do meu corpo. Dificilmente conseguia me entregar tanto ao sexo, pois algumas amarras acabavam me distanciando de sentir o prazer, de estender meu corpo completamente para a outra pessoa... Pensando agora de uma outra perspectiva, provavelmente a primeira semente plantada foi quando ele desamarrou os nós e me deixou livre.
Insegurança é algo complicado para quem só está assistindo. Ninguém entende quando você diz que tem problemas com seu corpo, com sua auto estima e etc. As pessoas te ignoram por não compreender que seja realmente um problema, você se enquadra no padrão razoável da sociedade, para que se importar? Você atrai quem quer atrair, sua beleza não é exuberante, mas é decente. Para que tamanha insegurança? Posso ter percebido que estava enrascada assim que notei que seus elogios não me ultrajava e não era superficial. Seus olhos me acompanhavam, mas não me julgando ou me analisando, eles só estavam me enxergando.
Não estava apaixonada, porém no nosso terceiro encontro casual me impressionei em perceber que não me importava se a luz ficaria acessa ou não. Foi nesse dia que prometemos que nunca iríamos nutrir sentimentos um pelo o outro.
Nossas saídas estavam ficando mais corriqueiras e intensas, antes o sexo era o ato principal, porém no quarto encontro 70% do nosso tempo juntos era utilizado para conversar e desabafar. Afundávamos na banheira com nossa bebida e perdíamos horas e horas de conversa. As vezes entre as conversas havia uma troca de carinho e alguns beijos. Havíamos criado um pequeno espaço dentro da casualidade, onde podíamos ser nós mesmo, sem filtro, sem expectativa e totalmente confortável.
No quinto encontro caiu a ficha de que não era mais o sexo que me atraia, era todo o resto. Contei sobre meu último relacionamento e ele me contou sobre o seu. Era explicito que tínhamos bloqueios emocionais e que estávamos indisponíveis emocionalmente. Entre as bebidas, risadas e as confissões, ele me disse algo que provavelmente seria o estopim de tudo:
- Eu poderia me apaixonar por você.
Aquela frase ficou ecoando na minha cabeça até nosso sexto encontro.
Segurando a taça de vinho, decidia se deveria me arriscar na confissão do que estava sentindo. Dizer em voz alta poderia destruir aquilo que tínhamos e não estava pronta para perder aquilo. Porém não falar a respeito estava me torturando. Por sorte não precisei dizer, quem falou foi ele.
- É triste sermos tão orgulhosos assim.
Questionei o que ele queria dizer com aquilo e ele respondeu:
- Na primeira vez prometemos que não iriamos nos apaixonar, sinto que estamos lutando para cumprir isso mesmo que nossa mente e nosso corpo pensem ao contrário.
Nos beijamos e enquanto fazíamos isso dentro da minha cabeça minha consciência gritava "Dane-se o Orgulho!".
Não houve sétimo encontro, tivemos um pequeno contratempo.
Foi quando iniciou a pandemia mundial de um vírus novo e fatal, fomos todos afastados do nosso trabalho. O mundo se hibernou. Tudo fechado, a vida basicamente parou, mas o tempo não.
Cinco meses em isolamento, foram cinco meses incubando meus sentimentos. Havia dias que a saudades apertava no peito e a certeza de que estava apaixonada era tão fortificada que minha mão tremia para mandar uma mensagem. Não podia, ser rejeitada naquele período que não se havia distração seria avassalador demais. A contingência de ser prisioneira em poucos metros quadrados torna tudo muito intenso, você sente as coisas 100% mais e não existe válvula de escape. Você se torna obrigado a lidar com tudo que você está sentindo e vira um alvo fácil para as peças que seu subconsciente prega.
Péssimo momento para se apaixonar por alguém.
Quando se tem um obstáculo como a distância, aquele que se dão bem nessa situação são os que facilmente conseguem confessar seus sentimentos, usam as palavras constantemente ao seu favor e são criativos no âmbito romântico. Não nos enquadrávamos em nenhum desses cenários. Não nos encorajávamos a mencionar nossos sentimentos, as poucas conversas que tínhamos por mensagem eram totalmente artificiais. Tudo aquilo era frustrante.
Queria poder abraçá-lo e olhar em seus olhos para compreender se era recíproco ou não. Precisava de gestos, de toque, das palavras que se dizem com a expressão. Precisava sentir de alguma forma sua alma. Os bytes cibernéticos não eram suficientes.
Para aqueles que não tem problemas em expressar seus sentimentos é incompreensível esse dilema emocional. Com duas ou três frases já se resolveria esse problema, mas para nós que durante anos fomos arrebatados com magoas, dor e confiança abatida, a dificuldade é tão presente que as vezes quase nos sufoca.
Queremos gritar para o universo o que sentimos, mas o medo de fazê-lo e sermos açoitados por conta própria... É terrível. A racionalidade nos impede de sermos criativos e otimistas. Estamos em um campo aberto com várias bombas submersas prontas para explodir. Não é possível encontrar as palavras de forma espontânea, sabemos que qualquer deslize podemos pressionar a pessoa demais e deixá-la desconfortável e o medo de perdê-la nos afugenta. Em contra partida também tem os dias que parece ser mais fácil só deixar para lá. Ficar tentando constantemente se entender é cansativo, assustador e imprevisível.
Decifrar o amor em época de isolamento para a pessoa que é indisponível emocionalmente necessita de muito apoio terapêutico.
Você tenta interpretar de diferentes formas o que só tem uma interpretação. Ha uma semana aproximadamente ele me mandou uma mensagem meio tímida. Só dizia "Eu gosto de você" simplista, básica. Arrumei pelo menos cinco significados para ela. Será que ele não quis dizer que gosta de mim como amiga? Talvez ele só quisesse ser legal... Ou pode estar com abstinência de sexo. Também poderia ter bebido. Ou é só carência da quarentena.
Passou-se tudo pela minha cabeça, menos aquilo que a mensagem significa de fato.
Por fim, não saberia dizer essas coisas diretamente para ele, as palavras me fugiriam ou se misturariam ao ponto de ficarem indecifráveis. Com o tempo o obvio se torna ainda mais obvio. Acredito que tudo que estou sentindo nesses meses de confusão interna, ele também deve estar sentindo, mas estamos tentando do nosso jeito. Não gosto de ser uma pessoa técnica, preciso distorcidamente montar um quebra cabeça e a cada gesto é uma possibilidade de uma peça nova. As vezes posso esta refutando-o, quando ele me manda uma música e não me aprofundo demais na discursão, ou quando ele posta algo que sei que foi para mim, mas ignoro com medo de me perder em um sentimento que talvez não consiga aguentar na solidão de ficar sozinha. Ele queria vir me ver, mesmo de longe. Neguei. Não por capricho, por medo. Não queria ver ele indo embora, pois se por ventura se tornasse uma despedida, seria mais fácil lidar quando não se sabe que é a última vez.
Chegou então uma carta dele dizendo que precisávamos aguentar tudo isso por mais difícil que fosse e que esperava que tudo ficasse bem no final. Sim, eu também espero. Estou montando nosso quebra cabeça.
Livre para interpretação, se tornaria essas pobres palavras uma carta aberta capaz de unirmos após todo esse apocalipse moderno? Se sim, queira eu querido designar algumas poucas palavras que guardei para você. Se meu dom de interpretação não está deficiente por anos sem uso, agradeço as músicas sem explicações, as indiretas soltas na madrugada em sua rede social e as frases curtas de afeto soltas no meio de nossos poucos diálogos. No início era um tanto intricado definir as coisas, culpei-o por alguns momentos por não ser claro comigo e pensei em desistir. Você só estava sendo você mesmo e sei, por também lutar contra essa insegurança constantemente, como deve ser estressante. A lonjura desses tempos incertos fez perceber que está longe do nosso alcance moldar o tempo, então mesmo com o anseio de poder dizer que sou sua, precisamos respeitar o nosso próprio tempo. E se o mar estiver agitado, pularia nele por você mesmo se não soubesse nadar.Dedicado a minha inspiração particular e minha felicidade infinita. 💙A💙
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Short StoryContos baseados em histórias reais trazendo átona vivências e convivências. E ai, Tu conta ou eu conto? ** Campeão Geral do concurso Curtas&Boas ** ** Terceiro lugar no concurso Carmina Burana com o conto "Prazer" **