Aquilo era a situação mais estranha que eu já havia vivido em toda a minha vida. Não estava ferida, não havia nada de errado com meu corpo. Cassandra havia sido categórica em me explicar depois que chegamos. Não havia nada de errado comigo, mesmo assim as dores que eu sentia foram tão fortes que precisei tomar remédios para dor diretamente na veia. Após ter sido tratada, meus amigos me trouxeram para casa e fiquei de repouso por dois dias inteiros, Cassandra levou os papeis ao professor com um pedido de desculpa e retratação pelo meu furo. Lembro-me claramente de ter saído de casa, mas nada depois disso faz sentido.
Tentei não preocupar ninguém, disse que ficaria em casa e recusei visitas da minha mãe. O que diria a ela? Como explicaria aquela situação? Não conseguia mentir e esconder nada dela, então tentaria evita-la até que as coisas fizessem sentido ou que eu desistisse de entender. Aquilo era o máximo que eu podia fazer.
Então, passei quatro dias presa em casa, até um ponto em que comecei realmente à desistir de entender o que havia acontecido. Pesquisei por toda a internet, mas nada me dava uma suposta resposta que fizesse sentido, por mais fantasiosa que fosse. Foi então que decidi seguir minha vida ao invés de enlouquecer. Afinal, eu estava bem e me sentia bem, não havia tido danos físicos e materiais, saber do que houve não mudaria que estava vivendo bem, então recusei-me ceder a meus devaneios e foquei em meu trabalho.
Durante uma tarde fria, sai de casa e fui para a biblioteca nacional, ia registrar alguns livros e fazer pesquisas. De alguma forma me sentia ansiosa e preocupada sempre que via uma faixa de pedestres. Era como se meu corpo não quisesse passar por aquela faixa novamente. Mesmo assim recusei entrar nesta onda de loucura e fui para a biblioteca normalmente.
Faltavam algumas ruas até chegar à biblioteca, havia saído do metrô, mas a região ainda parecia pouco movimentada. Olhei para o céu percebendo uma chuva iminente e acelerei o passo, quando logo a chuva começou. Havia uma loja de doces com uma fachada velha e uma cobertura de plástico sobre a vitrine, me abriguei sob ela pegando meu telefone para pedir um Uber, mas eu se quer tinha internet para acessar o aplicativo.
— Ai que droga... Ok, coragem Júlia!
Coloquei a bolsa sobre a cabeça após guardar meu telefone e corri pela calçada sentindo meu corpo todo se molhar, quando uma mulher surgiu na minha frente. Quase havia a atropelado quando ela saiu de uma viela entre uma loja e outra.
— Desculpa, eu não vi. Você tá bem?
— Será possível que você não morre nunca?! Quantas vezes eu preciso te matar pra você finalmente ficar morta?
As mãos dela me empurram pelos ombros e eu deixo minha bolsa cair enquanto sinto-me cambalear. Minhas costas batem conta a parede da loja me impedindo de cair.
— Você quer que eu morra por que eu esbarrei em você? Enlouqueceu garota?!
— Você devia ter continuado morta, não era pra ter voltado, eu deveria voltar, eu devia estar ao lado dele, você não merece o que tem!
Ela veio até mim, suas roupas aos poucos se transformaram em outras bem diante de mim e seus cabelos se soltaram tornando-se mais negros que antes. Tentei me desviar e sair de perto dela, mas quando estava prestes a cruzar a rua senti-me ser puxada para trás. Fui jogada no chão, minhas costas batendo contra a poça molhada e a pedra me fazendo gritar de dor. Tentei olhar para ela, mas a chuva estava ficando tão forte que manter os olhos abertos, deitada, era quase impossível. Me apoiei na parede e tentei me por de pé, foi quando olhei para ela e vi suas mãos brilharem como se estivessem em chamas, mas as chamas eram roxas.
— O Deus Ancestral tentou me substituir com você e fez isso?! — Ela apontou sua mão esticada para mim, apontando da ponta dos meus pés ao topo da minha cabeça.
— Você saiu de algum sanatório? Se você chegar mais perto eu vou chamar a polícia! SOCORRO, ALGUEM!
Ninguém parecia me ouvir, a rua estava deserta assim como a viela, seus estabelecimentos nela permaneciam fechados desde que havia chegado e minha bolsa estava à metros de distância, próxima a ela. Comecei a andar para longe dela, tentei não escorregar em minhas sandalhas encharcadas, mas então senti um impacto como se tivesse colidido com algo. De repente uma espécie de luz azulada começou a se formar ao meu redor. Seu brilho era suave, brilhava, mas não iluminava. Descia rapidamente como a chuva, mas permanecia intacto por onde passava, como se estivesse formando uma parede de vidro aos poucos. Pensei em tocar, mas estava com tanto medo que permaneci parada. A mulher que me perseguia então começou a jogar aquela fumaça preta de sua mão em cima de mim, como bolas. Se me dissessem que aquilo era um filme eu acreditaria, mas era comigo, eu estava no alvo dela e não entendia o porquê.
— Fica longe de mim!
— Para de falar, a sua voz me irrita. Essa mesma vozinha, esse seu rosto ridículo, por que você tem o direito de reencarnar e eu não?! Vadia! Eu deveria ter te matado antes, assim Xifeng não teria me prendido, eles não teriam me dado as costas se você não existisse.
Ela ficava cada vez mais irritada e gritava conforme falava. Pude ver como as veia de seu pescoço saltavam enquanto ela vinha em minha direção. Me levantei e tentei me afastar dela, mas aquele vidro estranho me impedia de seguir em frente. Dei socos tentando quebra-lo, mas não parecia surtir efeito, era como socar o vento, eu não sentia nada, mas ainda assim não podia ultrapassar.
— Esse escudo não vai te proteger para sempre!
Ela começou a me atacar cada vez mais intensamente. Meu coração estava quase na boca, meu peito doía e meus braços tremiam de frio e medo. Abracei minhas pernas e escondi meu rosto entre meus joelhos. A chuva não me tocava mais, mas o vento ainda me fazia tremer enquanto eu a ouvia gritar a meu lado, batendo naquela coisa como se seus punhos fossem um martelo. Eu estava sem saída, não tinha para onde correr, não tinha como pedir ajuda e ninguém me ouvia.
— Por que você está fazendo isso?! Vai se tratar, me deixa em paz, eu só quero ir embora, você não tem que fazer isso!
— Você vai morrer hoje!
Então, foi quando olhei para cima e vi sua mão bater contra o vidro azulado fazendo-o se rachar. Aos poucos sua mão começou a rachar várias partes do domo... Eu ia morrer.
— Saia de perto dela!
Ouço um grito soar do início da viela após um som de raios. Meu corpo todo treme ao som estridente do raio chocando-se contra o chão. Olhei para de onde vinha a voz do homem, mas ela permanecia na minha frente me impedindo de ver com clareza. Pude ver através de uma brecha ao lado dela, até onde o domo me permitia ir, e vi um homem de vestes chinesas antigas mexendo suas mãos como ela fazia. Uma luz branca partiu da palma de sua mão e só então me dei conta de que a cor de seus cabelos eram brancos.
— Xifeng! — Ela soou surpresa.
— Sai de perto dela!
O homem então lança o que tinha em sua mão em sua direção, mas ela desvia e aquela esfera esbranquiçada se espedaça junto da parede de vidro que me rodeava. Cubro minha cabeça, mas aqueles fragmentos desaparecem no ar como partículas de neve. Me vendo exposta, a mulher agarra meu braço e me levanta prendendo-me com uma força que nunca imaginei que uma mulher poderia ter.
— Quer? Então vem busca-la.
Quase que de imediato vejo a imagem dele desaparecer enquanto ele corre em minha direção. Pude ver seus olhos e sua expressão de medo e antes de finalmente desaparecer daquela viela, consegui ouvir sua voz alta e rouca gritando meu nome verdadeiro.
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As Mil Reencarnações de Chunhua
RomanceChunhua, uma talentosa escritora com raízes chinesas em São Paulo, jamais poderia imaginar o mistério ancestral que envolve sua existência. Ao se aprofundar em antigas lendas taoístas, ela descobre a epopeia de uma destemida deusa que, há séculos, s...