Era estranho explicar a sensação de mudar de lugar sem dar um misero passo. Eu ainda podia sentir a chuva em meu corpo quando vi paredes negras se formarem ao meu redor como uma neblina espeça que te envolve aos poucos. Via grandes tochas de pedra negra com chamas tão vermelhas e intensas que somente ao olhar podia-se dizer que queimavam mais do que as fogueiras de festas juninas com as quais estava acostumada. O cheiro forte de brasas, fumaça e mofo fez meu nariz doer à medida que tentava respirar, mas aos poucos o odor foi tornando-se o menor dos meus problemas.
Do outro lado do salão, de paredes altas e janelas com vitrais negros, pude ver uma espécie de videira de madeira queimada se retorcendo uma à outra formando uma rede arredondada com um circulo oco no centro. Uma luz intensa e negra se intensificava e então ficava opaca novamente, somente após encarar por alguns segundos que percebi que seguia o ritmo de uma respiração, como se ao inspirar seu núcleo se acendesse. No chão abaixo das videiras, restos de brasas e pedaços de carvão pareciam cair dos ramos da videira, estava se desfazendo aos poucos.
— Perdão mestra, não tinha a intensão de demorar... não irá mais acontecer — A mulher que havia me sequestrado há pouco então me soltou e caminhou em direção à videira — Sim, senhora.
Enquanto ela falava com o vento tentei rastejar de fininho para longe, apoiei meu corpo com os dedos e movi meus quadris sutilmente sobre o chão frio e áspero, sentia minhas pernas arranharem sobre a pedra áspera e suja de poeira, mas ignorei a dor e continuei me arrastando, há poucos metros atrás de mim uma grande porta escura de estilo medieval com maçanetas de argolas de ferro e entalhos que lembravam arabescos e espinhos. Se eu fosse poucos centímetros mais alta poderia me deitar e facilmente toca-la com a ponta dos dedos, por isso deixei-me levar pela adrenalina correndo em minhas veias e me levantei, mas fui puxada com força para trás por algo que agarrou minha barriga.
O tombo não chegava nem perto das dores que já havia sentido, acostumada com o fato de ser agarrada e jogada ao chão, apenas me ressenti por não ter sido mais rápida e desejei ser invisível para poder sair dali sem ser notada. Não fazia ideia de como fugiria, de onde estava, quem era ela, mas sabia com certeza que qualquer que fosse aquele templo, não havia sido erguido para uma divindade benevolente.
— Mal tive a chance de ver seu rostinho, por que já está fugindo? Onde está sua cordialidade?
Ouvi uma voz alta de mulher ressoar pelo salão ecoando por todas as paredes. Olhei ao redor e percebi que a morena que havia me trazido estava calada, então a menos que ela fosse ventríloqua não haveria formas de ter sido ela a dizer aquilo.
— Ruolan, vire-a para mim.
— Senhora, quer fazer a transferência agora?
— Não se preocupe, eu farei isso logo, quero ver a cara dela primeiro.
À passos de distância de mim, a tal Ruolan ergueu as mãos e remexeu os dedos enquanto eu começava a flutuar aos poucos. Era como se milhões de braços me apertassem ao mesmo tempo do pescoço aos calcanhares me deixando completamente imóvel.
— Desgraçada, devia ter continuado morta!
— Senhora, ao menos ela vai servir para que você retorne, então ele não terá motivos para afasta-la.
O silêncio da voz misteriosa fez um sorriso orgulhoso brotar no rosto de Ruolan que permanecia me sustentando de frente à videira. De alguma forma a voz parecia sair do núcleo daquela planta asquerosa, mas sua voz ecoava de todas as partes como se ela estivesse por todos os lados. A sensação desagradável que ela provocava me fazia sentir raiva embora eu não tivesse ideia de quem ela era e o que estava acontecendo.
— Faça agora, Ruolan...
A mulher veio em minha direção pouco após me soltar. Senti meu pé virar e minhas pernas colidirem com o chão quando cai. Tentei me levantar e cambaleei para trás no processo de reordenar minhas pernas desengonçadas. Ruolan então me imobilizou e segurou minha mandíbula quando se aproximou mais de mim. Vi seus olhos azul escuro intenso me encarando enquanto sua mão fria me segurava com cada vez mais força. Tentei empurra-la, mas meu braço mal se moveu, era como se o ar pesasse toneladas ao meu redor. Então, a luz negra partiu do núcleo e flutuou pelo ar em direção à meu rosto, aos poucos ele desceu pela minha garganta e consegui sentir o gosto amargo de fumaça me intoxicando, a ponto de eu não conseguir mais respirar.
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As Mil Reencarnações de Chunhua
RomanceChunhua, uma talentosa escritora com raízes chinesas em São Paulo, jamais poderia imaginar o mistério ancestral que envolve sua existência. Ao se aprofundar em antigas lendas taoístas, ela descobre a epopeia de uma destemida deusa que, há séculos, s...