Pensava que minha vida não teria sentido desde o dia em que os perdi. Gabriel havia me deixado pouco depois de perdermos nosso filho e hoje me vejo diante do computador fazendo o que amo, mas sozinha. Embora isso não me incomode, um vazio preencheu meu peito desde aquele dia em que ele pegou o avião para a china em busca de sua carreira longe de mim. Ainda consigo lembrar da raiva em meu peito, o rancor que guardei dele por tanto tempo por ele ter rompido nosso noivado e me deixado com tanta dor, logo ele o único que conseguiria me entender. No entanto, hoje, com outra mente, percebo que fui egoísta. Não lhe dei o apoio que eu tanto exigi, quando ele também sofreu. O deixei sozinha e isso deve ter doido demais.
O telefone toca me fazendo tremer. Levo a mão ao celular sob minhas pernas cruzadas e o atendo. Do outro lado da linha uma voz ofegante e ruidosa me chama fazendo minhas têmporas doerem... Droga, eu devia ter lembrado!
— Filha, estou chegando, você quer alguma coisa do mercado? — Em mandarim, a voz de minha mãe ecoa em minha cabeça.
— Não... Ah, espera, quero sim, me compra uma caixa de suco natural, aqueles da Del Valle — comentei, ao fundo a balbúrdia do mercado me faz gritar para ser ouvida — Não mãe, Laranja!
Haviam se passado tantos dias que não falava com ela que temi errar no mandarim, afinal, meus pais eram os únicos com os quais ainda falava desta forma.
— Ok, obrigada mãe, tchau.
Desligo o telefone e me levanto em um salto, minhas pernas dormentes me fazem gemer de dor enquanto me apoio nos móveis para poupar minhas pernas finas do peso do meu corpo. Pobrezinhas, não era fácil permanecerem esmagadas sob o corpo de uma jovem autora falida que não sabe a hora de parar de escrever. Eu tinha sérios problemas com limites, nunca sabia quando era a hora de parar e isso havia me prejudicado o suficiente com a gastrite que havia adquirido, todavia, lá estava eu, há 24 horas sem dormir escrevendo em meu diário sobre meus problemas e planejando o que faria para conseguir dinheiro.
O aluguel estava para vencer e eu estava começando a ficar sem dinheiro. Se não fosse por meus pais eu talvez não tivesse sobrevivido à pandemia com o movimento baixo de compras de livros que tive. Era uma tristeza ter de ver que meu país estava mais preocupado com o que uma celebridade comeu ontem do que com a literatura. As vezes pensava que meus pais tinham razão em me repreender, mesmo assim, o que posso fazer? Não sei fazer outra coisa se não viver do que amo.
Bastaram alguns poucos passos para eu deixar a sala e chegar à cozinha. As paredes brancas e rosadas se iluminavam com a luz que vinha da pequena janela que dava para a rua. Dali conseguia ver claramente a praça onde sempre ocorriam feiras de cultura asiática... Era curioso perceber que éramos uma família chinesa vivendo em um bairro japonês, mas quem se importa com isso hoje em dia?
— Já vai!
Peguei uma panela sobre o escorredor, a enchi com água e deixei sobre a bancada antes de alcançar a porta que ficava poucos passos ao lado. Olhei pelo olho mágico e percebi a senhora baixinha e rechonchuda com sacolas nas mãos. Seus olhos cansados e olheiras marcadas pareciam gigantes vista dali.
— Onde está o papai?
— Seu pai ficou na loja, temos que abrir logo. Vim ver como está, mas parece que não preciso perguntar.
— Ah não, vai começar!
— É sempre assim, Chunhua! Você não come minha filha, está magra como um bambu, você vai desaparecer desta forma.
— Júlia mamãe, me chama de Júlia!
— De forma nenhuma, seu nome é Chunhua, por que vou te chamar assim? Você vai ferir sua madrinha se falar assim perto dela, não faça isso.
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As Mil Reencarnações de Chunhua
DragosteChunhua, uma talentosa escritora com raízes chinesas em São Paulo, jamais poderia imaginar o mistério ancestral que envolve sua existência. Ao se aprofundar em antigas lendas taoístas, ela descobre a epopeia de uma destemida deusa que, há séculos, s...