Voltar para casa depois de tanto tempo não foi confortável, os velhos hábitos e as questões não resolvidas ficaram mais evidentes do que ele gostaria. Não chegava ao ponto de dizer que sua infância foi difícil ou traumática, mas sentia um enorme vazio ao pensar naqueles dias. Isso ficou evidente na noite chuvosa de domingo. Arek estava mordendo um dos seus brinquedos, e depois que se entediou com o cachorro e com o celular, foi revirar as coisas que deixou na casa dos pais.
Viu fotos dos colegas que sequer lembrava dos nomes, seu rosto sempre entediado. Revirou os cadernos do ensino médio, sorriu dos desenhos que fez nas folhas e nas capas nos momentos de tédios das aulas, folheou as anotações do seu primeiro e único semestre da faculdade de medicina veterinária que fez antes das cobranças do seu pai e as preocupações de Roberta se tornarem pesadas demais e desistir do curso. Ficou um bom tempo olhando as folhas, sua letra apressada gravada com a tinta azul da caneta, tocou o relevo nas páginas.
Pensando bem, acho que nunca me animei com nada desde então.
Fechou o caderno e o jogou na mesinha de qualquer jeito, e daí que seu sonho na época era ser veterinário, ao invés de olhar para o passado, decidiu se preocupar com o amanhã. Liam deitou sob um dos braços, olhando para o teto até entediar sua mente ao ponto de finalmente dormir um sono agitado e raso.
Quando a segunda-feira chegou, Liam saiu um pouco depois dos seus pais para levar Arek para o veterinário. A castração estava marcada para dali poucas horas. Arek pareceu saber o que estava por vir, pois foi o caminho todo amuado e quieto no banco de trás.
-Desculpe, Arek. Prometo que vai acabar logo - Aproveitou a parada em um sinal fechado para afagar as orelhas grandes dele. Arek sequer lambeu seus dedos, só o olhou com os olhos tristes - Não fique assim.
O cãozinho não se animou, independentemente do que tentasse, tanto que Liam entrou na clínica veterinária com remorso estampado no seu semblante. A médica veterinária, Luana, veio poucos minutos depois que um jovem com óculos redondos avisou sua chegada.
Arek se encolheu mais no seu colo e a mulher riu - Ele já acha que sou um monstro!
-Ele está assim desde manhã - Disse com a testa franzida - Estou preocupado que ele esteja doente, será que antes da cirurgia a senhora pode fazer um check-up?
Luana o pegou no colo e olhou seu rosto atentamente - Acho que ele está assim por sua causa.
-Minha?
-Os cachorros conseguem perceber nossas emoções e acabam refletindo, em certos casos. É por isso que pets em casa com crianças costumam ser tão agitados, por exemplo - Ela conseguiu ver na expressão dele que Liam ainda estava preocupado e prosseguiu - Vamos fazer o seguinte, eu vou ficar de olho no Arek e se ele se alegrar, eu faço a cirurgia na parte da tarde, que tal?
Resistiu à vontade de pegar Arek e sair correndo daquela clínica - Não vai atrapalhar sua agenda?
-Não, o movimento não está tão bom assim, o que me deixa feliz e triste ao mesmo tempo - Luana pareceu lembrar de algo e estalou os dedos da mão direita - Falando nisso, você trabalha numa imobiliária, certo? Sabe sobre algum lugar mais perto do centro que esteja alugando? Estou pensando em mudar minha clínica para lá.
A imagem da pintura desbotada da Lan house veio à mente - Na verdade, sim, sei de um lugar. Não é no centro mesmo, mas fica na avenida que dá acesso, é bem movimentado.
Luana ergueu as sobrancelhas castanhas e seus olhos iluminaram - Ótimo! Você pode me mandar fotos ou me passar o número do proprietário?
-Assim que eu vier buscar o Arek, eu trago um dos dois para você.
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A vida é foda
RomanceNo mesmo dia que perdeu seu emprego, Liam descobriu que sua esposa estava o traindo com seu melhor amigo. Ao lado do seu cachorro, e sem mais a obrigação de sorrir o tempo todo e esconder suas emoções, Liam decide se reinventar e deixar sua infância...