Coroa Maldita

0. Prólogo

Quando se passa anos e anos em um mundo mágico em que elfos, fadas e dragões são vistos a cada esquina, um outro ambiente onde não há nada disso se torna estranho e um tanto desconfortável com as criaturas que andam por aqui ── que, inclusive, são iguais a mim. São espécies estranhas como eu, no entanto, a dificuldade em me encaixar no mundo humano foi pior do que tentar me sentir parte daquele outro mundo. As pessoas são estranhas, no geral. Há vários carros que vem e vão pelas estradas e todos pareciam conectados em seus aparelhos, o que, por um tempo, foi uma maravilha nunca vista antes pra mim. Era tudo novo e esquisito, mas bonito, de alguma forma.

No entanto, embora eu tenha fugido de Orphani, aquele reino parece não ter saído da minha cabeça. As lembranças são vívidas e recentes, tanto em minha memória quanto em meu corpo, e nunca consigo relaxar ou confiar em outras pessoas. Aquele mundo que é tão fantasioso e bonito para as pessoas é contado em diversas histórias para crianças e retratado da forma mais utópica que me sinto pessoalmente ofendido.

Felyni infelizmente é uma feérica. Porém, uma feérica que adotou e criou uma criança humana como se fosse seu filho. Uma feérica gentil e amorosa, completamente diferente do restante de sua espécie. Uma vergonha e esquisita para seu povo. Alguém que abandonou sua terra para viver em outra com o menino humano que resgatou e o adotou. Embora ela seja querida, nada apaga as torturas e a escravidão em Orphani, as humilhações, os horrores que tive que presenciar mesmo quando criança e do sangue feérico que ainda corre em suas veias.

── Yeonnie! ── Felyni de repente me chama, despertando-me de meus monólogos mentais.

Quando noto, vejo à minha frente um desenho que inconscientemente acabei de fazer de um goblin sorrindo enquanto quase devora um menininho assustado e sujo. Enojado e arrepiado, guardo o papel na gaveta onde estão outros desenhos como esse e vou ao encontro de Felyni.

Por ter um deal, sou incapaz de ver a forma humana de Felyni ── feitiço que ela usa todos os dias para esconder sua verdadeira face dos humanos. Ela diz que retira o feitiço assim que coloca os pés em casa, mas pra mim não faz nenhuma diferença, pois sua pele azul e seus longos cabelos brancos ainda estão ali mesmo quando ela se olha no espelho e diz estranhar sua aparência humana.  Segundo Felyni, sua forma humana tem a pele pálida coberta por “floquinhos”. Na primeira vez em que usou essa magia em si, ela desesperou-se achando que iria morrer.

Na TV passa algum noticiário de assassinato enquanto Felyni está na frente do fogão com um livro de receitas aberto e cantarola. Seu vestido é longo e branco com mangas bufantes e transparentes, e seus cabelos balançam com seus movimentos, parecendo alheia à minha presença. Sento-me à mesa e observo-a cozinhando seja lá o quê, enquanto me perco em pensamentos.

── Já passou ── Felyni diz de repente, me pegando de surpresa. ── Você tem a vida normal que sempre mereceu ter.

── Quê?

── Está com aquela cara de quem está pensando no passado. Você constantemente faz essa cara.

Suspiro, tendo a certeza de que meu rosto perdeu o brilho. Às vezes as lembranças de Orphani me assombram e não consigo esconder os terrores que sinto daquele lugar.

── Nós já falamos sobre isso ── digo. ── E não quero ter essa conversa de novo.

── Tudo bem ── ela dá de ombros, virando o rosto para sorrir pra mim. Seus olhos azuis brilham. ── É apenas um pequeno lembrete pra você.

── Eu sei.

Assim como sei que sua mera presença já é o bastante para me lembrar daquele lugar.

── Estava pensando em uma noite de filmes ── ela abaixa o fogo e se vira completamente, sorrindo para mim. ── O que acha? Tenho algumas opções de filmes também, e poderíamos assistir depois de jogarmos uno.