1 - O azul dos olhos medonhos

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Cinzento, essa era a cor das nuvens que pairavam no céu, saudando os viajantes desgraçados que se atreviam a adentrar aquela montanha.

O sol fulgia as árvores cujas folhas espalharam-se pelo chão, formando uma camada grosseira e amarronzada a ser pisoteada pelos malquistos visitantes.

Me perguntei como o sol sobressaía-se no gris das nuvens que cobriam o azul céu, irradiando seu brilho para iluminar os solitários habitantes daquela região.

Certamente haveria de ter moradores ali, hein?

Uma brisa suave sacudia levemente os meus cabelos amarrados em um rabo de cavalo, soprando-os para os meus olhos, fazendo-me vez ou outra arrumá-los atrás da orelha.

Suor escorria pelas minhas bochechas, traçando sua rota pelo meu pescoço, até que eu me dignasse a enxugá-los com as mangas.

O ar daqui não parecia ser diferente da cidade, apesar do clima seco e da atmosfera de solitude, decerto, as pessoas eram agourentas.

Certa vez, me foi dito que as terras sobre a qual estou a pisar eram estéreis, um terreno baldio que abrigava seres algozes, meus ouvidos fizeram-se surdos à estas palavras e permiti que a minha intuição falha me trouxesse para esta terra coberta por folhas secas e árvores nuas. Já era quase fim de tarde, o outrora vívido sol se punha por trás do horizonte, me convencendo a parar por um tempo.

Procurei um local para descansar meus músculos que gritavam de dor e imploravam-me por uma pausa, meus pés ardiam pela intensa caminhada e minha garganta estava seca, peguei o cantil pendurado em minha cintura e tomei um gole cheio, avaliei o peso, a água não duraria muito tempo.

Puxei a bolsa que estava pendurada em minhas costas e a abri, havia rações que durariam no máximo dois dias, tempo suficiente, creio eu, para encontrar o que vim procurar e fazer minha retirada daqui.

Não quis acender uma fogueira, temi por minha vida, pela possibilidade de deparar-me com as tão chamadas criaturas pavorosas citadas nas canções entoadas pelos bardos que se apresentavam na cidade de onde parti.

Senti o frio embrenhar-se em minha pele, lenta e dolorosamente congelando os meus poros, fazendo-me estremecer. Ergui a cabeça para vislumbrar um céu colorido com tons de rosa, amarelo e laranja, atingindo meus olhos e trazendo-me uma paz fugaz.

Fiquei ali, esperando a noite cair enquanto traçava os padrões disformes e penosos em meu braço, planejava seguir minha jornada ao amanhecer.

Nunca fui aventureira, não percorria o mundo em busca de experiências, não era poderosa como as feiticeiras ou imortal como as necromantes, não tinha a força dos cavaleiros ou a agilidade dos sicários. Mas o que havia de encontrar aqui certamente deveria me desviar do caminho indubitável para a morte, pessoas como eu não queriam morrer, ainda que a vida fosse uma refeição pútrida.

E a noite chegou, trazendo consigo uma lona tenebrosa que cobriu o céu em escuridão, não havia lua, seu brilho prateado não se mostrou e não iluminou os galhos nus das árvores.

Descansei minha cabeça contra uma árvore, certa de que não havia qualquer ser à minha volta após uma verificação cuidadosa dos arredores. Minha respiração ainda era instável na intensa frigidez, meus olhos procuravam algum resquício de luz em um lugar qualquer, mas tudo o que pude ver era um breu intérmino.

E finalmente a exaustão me alcançou plenamente e me dominou, um dia inteiro de caminhada havia roubado as minhas forças.

Fechei os olhos, cansada demais para manter a guarda, sabia que deveria estar atenta, preparada para quaisquer eventuais incidentes. Mas a fadiga também subjugou minha mente, a morte era algo inevitável para mim, deixei os cantos de meus lábios se erguerem com o pensamento, parecia irônico, arriscar minha vida pela fajuta possibilidade de me salvar.

Não lembro a distância que escalei para chegar ao topo desta montanha, não tive a chance de atestar a cor do solo, os aldeões diziam que era de um vermelho escuro como o vinho, como se os deuses o tivessem batizado com uma chuva sangrenta, que se infiltrou nas partículas de terra e tingiu a superfície.

Senti-me aos poucos perder o controle sobre meus membros, os pêlos de meu corpo eriçando-se em um arrepio medonho, tentei mover os dedos, desesperando-me por não sentir o movimento que minha mente os ordenou fazer.

Estava sentada, minha cabeça ainda repousava contra o tronco de uma árvore, uma perna esticada e a outra levemente dobrada, e nesta posição permaneci, sem poder me mexer um único centímetro.

Meus olhos ainda encontravam-se fechados enquanto eu tentava, incansavelmente, tomar de volta o domínio sobre meu corpo. Também ouvi sobre isso em algum lugar enquanto seguia viagem, uma história comum contada pelos taberneiros, pelos bêbados enquanto alegremente tragavam sua cerveja, pelos esmoleiros, os aldeões, e até entre os guardas da cidade, um relato comum de um desafortunado ancião que teve a infelicidade de encontrar uma criatura da montanha.

Elas não tinham nome, mas dizia-se que possuíam o poder de paralisar suas vítimas, impedindo-as de fugir ou fazer qualquer outra coisa, e era tudo o que se sabia sobre elas, nunca me contaram sobre como poderia ser sua aparência, ou o que fariam com suas vítimas após capturá-las.

De repente me vi na descrição daquele ancião, como um animal errante prestes a ser atingido por uma flecha certeira, imaginei infinitas possibilidades do que poderia vir a acontecer comigo nos minutos seguintes. Inconscientemente, abri meus olhos, então eu vi, os únicos pontos de luz em meio a escuridão sem fim.

Duas órbitas azuis, mais profundas que as profundezas dos oceanos, como as águas azuis cristalinas com os padrões circulares de uma pedra que alguém possa ter jogado.

Hipnotizada pela intensidade da tonalidade azul que atingiu meus olhos, cessei as tentativas de lutar contra a força que me oprimia.

E as minhas energias esvaíram-se completamente, levando consigo minha resistência obstinada, no fim, eu cedi à morte, vi minha vida inteira projetando-se naquelas órbitas azuis, destoando em minha mente, vivi novamente todos aqueles dias malfadados, sequer me perguntando como conseguira abrir os olhos quando todo o meu corpo estava paralisado.

***

Olhei para baixo, vi os pés minúsculos de uma criança, levantei as mãos e novamente, as mãozinhas de uma criança. Ergui o olhar, e à minha frente estava uma mulher deitada sobre uma cama grosseira de palha, sua pele coberta de nódoas, o rosto envelhecido e com numerosas rugas e marcas de expressão, era a minha mãe, extremamente adoentada.

Nessa época, meu pai estava preso nas celas imundas da prisão, pelo crime de roubo e assassinato, não se sabe se ele realmente o cometeu, inocente ou não, ele morreu antes que pudesse se defender, esfaqueado até que tivesse suas tripas expostas por um dos presos.

Não pude mais controlar o corpo da criança de dez anos e apenas fiquei a observar através daqueles olhos castanhos enquanto me aproximava lentamente de minha mãe, ela sorriu, me dizendo que estava tudo bem, e que logo melhoraria.

Típico dela, eu nunca desconfiei disso, minha eu de dez anos acreditara cegamente e esperançosamente naquelas palavras.

Eu vi minhas mãos mergulhando um pano esfarrapado em um pequeno balde com água, torci o pano para livrá-lo do excesso de água e limpei cuidadosamente o rosto de minha mãe, e então seus braços e pernas, cuidei dela até que estivesse limpa.

Então o cenário a minha volta mudou, para o dia em que fiz a sopa de um coelho que consegui capturar depois de um dia inteiro de caça, cozinhei a carne e derramei na tigela velha de barro, levei o resultado de meus esforços para que ela pudesse ter a sua refeição. Mas deparei-me com seu corpo estático, ainda morno, sacudi-a até me cansar, ela não se moveu, não abriu os olhos, não sorriu e não disse que estava bem.

Nesse dia eu percebi, havia me tornado órfão.

Estava sozinha, como deveria estar. Vivi com minha mãe em um local afastado da cidade, eu conhecia as árvores, conhecia as matas. Aprendi a caçar com minha mãe, ela me ensinou cuidar da carne e cozinhá-la, me ensinou a transformar galhos de árvores em arcos grosseiros.

Nunca fui afeiçoada ao meu pai, não sabia o que ele fazia, o via raramente, e minha mãe adoeceu e morreu em sua ausência, quando soube que ele fora assassinado, não senti compaixão, não senti nada.

Misty (Girl's Love)Onde histórias criam vida. Descubra agora