6 - Bondade justificada

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"Você....dizer a eles que......estão intactas. O....não foi descoberto, houve ap......um....desafortunado....invadindo a montanha.......morrendo sob os efeitos dos arranjos de........" Ouvi uma voz rouca falar, minha cabeça ondulava, e eu não conseguia formular um pensamento completo em minha mente.

Meus olhos parcialmente abertos podiam apenas enxergar vultos no escuro, como se houvesse dezenas de figuras à minha frente, conversando entre si, as palavras sobrepondo-se umas às outras, confundindo-me.

"Apenas um hu.... morto...tudo bem.....farei. Mas.....quanto a você?" Outra voz, mais rouca que a anterior, soou, não pelos meus ouvidos, mas em minha mente, as palavras parecendo ser impressas diretamente em meu cérebro.

Tentei me mover, mas, como anteriormente, não tinha domínio total sobre meu corpo, sentia apenas um extenuante torpor correndo pelos meus membros.

Estava desnorteada, não conseguia discernir com precisão nada ao meu redor, mal podia entender as vozes distorcidas, sem realmente processar uma única frase completa. E não demorou para que meus sentidos me deixassem novamente.

Abri os olhos, a visão de um teto simples me cumprimentou, a claridade do dia incomodando minhas pupilas.

Levei as mãos ao meu rosto, cobrindo-o, me acostumando ao ambiente, e então me sentei para olhar ao redor. Estava em um pequeno quarto, não era extravagante, mas era confortável, e sem muita mobília, havia apenas uma cama, um compartimento para se guardar os pertences e uma mesa de madeira no canto do quarto. Passei a mão pela cama macia sob mim, o cobertor ainda cobrindo parte do meu corpo.

"Bom dia." De repente, alguém falou próximo a mim, fazendo-me desviar o olhar para a dona da voz com um sobressalto. "Como se sente?" Ela estava sentada em uma cadeira, os braços cruzados, me encarando com um ligeiro sorriso em seu rosto.

Eu não havia sentido sua presença ou seus movimentos, sequer a vi quando olhei em volta no quarto, de alguma forma, ela, por um momento, havia se tornado completamente imperceptível para mim.

Não pude evitar ficar preocupada, eu não estava acostumada a ter pessoas perto de mim enquanto dormia, e meu sono era leve, não havia como dormir sem notar a presença de outra pessoa nas proximidades, mas parecia que ela era uma exceção.
"Como cheguei aqui?" Ouvi a pergunta deixar meus lábios antes que eu a contivesse. Meish levantou uma sobrancelha, divertida.

"Eu te trouxe, obviamente. Mas então, como estão as dores em seus braços?" Sem esperar pela minha resposta, ela se levantou da cadeira, alcançando a cama em que eu ainda estava sentada com um passo, a mão foi estendida até as marcas no meu braço, seu polegar acariciando-as gentilmente enquanto ela as analisava. "Parece que alguém está fortalecendo o poder da maldição." Suas sobrancelhas franziram-se, e então, outro sorriso floresceu de seus lábios.

Mas eu não reagi bem ao ouvi-la. Senti um arrepio percorrendo-me de súbito, não gostava de como uma única frase me impactara tanto. Meus olhos congelaram-se, fitando a parede de madeira à minha frente, não esbocei qualquer reação, estava estática em meu lugar.

Eu vi a vida de minha mãe deixando-a lentamente. Vivi por conta própria desde então, adquiri novas habilidades, aprendi novas coisas, sobreviver não era a coisa mais prazerosa de se fazer, mas eu estava indo bem, ao menos eu gostava de saborear um bom ensopado, eram poucos os momentos em que me sentia verdadeiramente feliz.

Mas então, tudo se foi, e em uma bela noite, marcas surgiram em minha pele, cobrindo as cicatrizes já existentes em meus braços, entalhadas em mim como ferro abrasante, e não importava o quanto eu tentasse me livrar delas, pareciam fazer parte de mim.

Inúmeras vezes eu arrisquei cortar a camada de pele mais superficial, mas a dor que sentia ao fazê-lo roubava de mim todas as minhas forças, fazendo-me cair em um estado profundamente exaustivo, a dor de machucar-me com lâminas não era a usual de um corte, era mais como a de uma queimadura feita com metal aquecido, dolorosa e agonizante.

Desde aquela noite, fui obrigada a conviver com a dor constante, atenta a cada segundo. Ela surgia a qualquer momento, e quando eu menos esperava, meu corpo perdia as forças e a ardência insuportável me torturava.

Para os dias que vivi durante os últimos três anos, morrer teria sido melhor do que estar viva, mas a teimosa me impedia de buscar a morte, em vez disso, preferia passar cada dia em tortura constante a entregar-me.

E saber que essas marcas foram causadas por alguém não me trazia qualquer consolo. Minha vida inteira foi resumida a sobreviver, não tive amigos ou parceiros. A única pessoa com quem convivi fora Miranda, mas ela havia partido há anos.

Não conseguia pensar em nenhum motivo para que me lançassem uma maldição, eu sabia o que motivava as maldições, mas não tinha como haver alguém com tal ódio por mim.

Olhei para Meish, que ainda traçava delicadamente a textura negra sobre minha pele, então segurei sua mão firmemente. "Quem você acha que pode ter feito isso?"

Ela direcionou seu olhar para o meu rosto, o sorriso sendo substituído por uma expressão séria. "Não há como saber, este é um tipo de maldição utilizada para atormentar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Quem quer que tenha feito isso, certamente nutria um ódio incomensurável, isso não é algo que pode ser facilmente revertido."

"Mas há como reverter?" Senti uma onda de esperança em meu interior, um desejo sincero de que eu fosse capaz de me livrar desses padrões gravados em meu corpo.

"Para ser sincera, não acho que seja possível no momento. O ódio da pessoa que conjurou o feitiço é profundo demais, e enquanto ela continuar fortalecendo a maldição, você estará fadada ao sofrimento." Meish colocou a outra mão sobre a minha, que ainda continuava apertando-a, e soltou-se de meu aperto.

"Então, não há solução?" Minha voz estava atônita, meus últimos fios de esperança teimosamente agarrando-se às suas palavras.

"Esse não é necessariamente o caso. Esta maldição não foi lançada para matar em pouco tempo, em vez disso, é para torturar lentamente, e então levar a vida do amaldiçoado. Mas, você será uma exceção. Na verdade, eu posso te ajudar com isso." Os cantos de seus lábios se ergueram novamente enquanto ela soltava as palavras que sabia que me tocariam, ela sabia que era a minha última esperança.

Eu não era ingênua ao ponto de acreditar que ela me ajudaria apenas por pura solidariedade. Já havia visto um pouco do mundo, e estava certa de uma coisa: tudo tinha seu preço.

Mesmo os pais amorosos alimentavam seus filhos para que estes os ajudassem com os serviços do campo.

Os aristocratas criavam suas proles para que pudessem assumir o nome da família e levá-la adiante.

Até as ações de caridade dos orfanatos não eram injustificadas, morar em um desses por quatro anos me fez entender que não havia bondade sem motivos, ao menos não para pessoas como eu.

Estendi a mão para agarrar a sua novamente, encarando-a impetuosamente. "Qual o seu preço?"

Então, eu vi seu sorriso se alargar.

Misty (Girl's Love)Onde histórias criam vida. Descubra agora