II - O que vale a pena

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CAMILLE DUBOIS

Respiro fundo e colo o ouvido na porta. Tento capitar alguma movimentação do outro lado e não há nada. Eu não ouço nada. Nem meus cachorros farejando o chão ou os servos limpando até tarde.

Cautelosamente, me afasto da porta trancada e alcanço a janela do meu quarto, abrindo-a para ser atacada pela brisa refrescante da noite. Meus cabelos são bagunçados e eu os afasto da frente dos olhos, ajeitando as calças folgadas nos quadris. Passo uma perna pela janela e me seguro nas trepadeiras, fortalecendo-as com minha magia para não correr o risco de cair, ou pior, deixar rastros de minha fuga.

Umedeço os lábios e começo a descer, guiada pela memória motora de quem fez isso um milhão de vezes. São seis metros até o chão e eu só ouço minha respiração ofegante e meus batimentos acelerados. Não posso ser pega. Hoje não.

Por favor, hoje não.

Meus pés tocam o chão e eu me afasto da trepadeira, puxando a touca para cima da cabeça. Rompo a escuridão ao acender uma pequena bola de fogo na palma de minha mão direita, pois preciso enxergar o caminho. Todas as luzes estão apagadas e eu me aproveito da brecha para correr para a frente de casa o mais rápido possível ao som dos meus tênis esmagando a grama verde recentemente aparada.

Olho para trás tantas vezes que é a maior sorte não ter tropeçado em nada até chegar nos portões de quase quatro metros de altura. Apago a chama em minha mão e, sem perder tempo, me atiro nos ferros, escalando-os. Estou tão habituada ao ato que minhas roupas nem ficam mais presas nas pontas afiadas do topo.

Me encontro livre depois de um pulo e corro na estrada vazia.

As arvores que a ladeiam se curvam em minha direção e me impedem de ver a lua ou as estrelas, mas esta não é uma preocupação. Tenho que vê-los antes de partir. Amanhã, voltarei ao internato Dark Wood, e lá ficarei até terminar os estudos. Logo após, me casarei e irei morar com meu detestável marido em nossa triste casa, comprada por nossos pais em uma parte de Alphanor que nenhum de nós vai querer estar. Essas escapadas no meio da noite ficarão impossíveis. Só de pensar a respeito, tenho vontade de gritar a plenos pulmões, mas a pulseira no meu pulso me lembra do que sou e do que não posso fazer. Me exaltar está no topo da lista.

Levo menos de meia hora até chegar ao destino e, felizmente, o desgaste vale a pena. É a única coisa que vale a pena para mim.

Estou ofegante quando chego à cidade adormecida de Ravenhollow. O lugar é considerado humilde, as casas são coladas umas às outras e o comércio é modesto. Nunca estive nessa cidade quando ela está acordada e não lamento. O silêncio é reconfortante e eu me sinto bem, vendo pelas vitrines apagadas as joias, as roupas e os bolos. Gostaria de fazer parte de uma cidadezinha assim, mas não me prendo ao desejo, empurrando-o para o fundo da minha mente e o enterrando com os outros.

Caminho até a última casa da rua 4 e subo os degraus da varanda com passadas pesadas. Solto um suspiro e bato na porta uma sequência de música, que é o nosso código de segurança. Ele sabia que eu viria. Sempre venho um dia antes de voltar para o internato.

A porta se escancara e, a princípio, não vejo ninguém. Meus olhos caem e eu me deparo com um menininho de cinco anos me encarando. Ele tem os cabelos da cor do fogo e olhos da cor da esmeralda mais brilhante. Ele veste um pijama com estampa de leões e ri para mim, dando uns pulinhos.

— Tia Mi! — ele grita. Dobro-me e o pego no colo para apertá-lo em um abraço repleto de saudade. Entro na casa e encho meu sobrinho mais velho de beijos, fazendo-o rir mais e espernear. Seu cheiro é tão bom.

— Cas? — uma voz masculina chama e meus olhos atravessam a pequena e aconchegante sala de estar, encontrando os de meu irmão.

Ele abre um largo sorriso e sai da cozinha, vindo me abraçar. Seus cabelos loiros estão uma bagunça e seu cansaço é mais do que aparente. Ter dois garotos atentados como o diabo não é uma tarefa simples e o faz parecer mais velho do que realmente é.

OS DESONRADOS FLETCHEROnde histórias criam vida. Descubra agora