AVISO
Este conto em particular contém temas sensíveis, como o uso de drogas, vício, depressão, ideação suicida. Caso você se sinta desconfortável ou mal com esses tópicos, não tem problema pular esse capítulo e ir direto para o próximo.
- Lalá
NO TEATRO grego haviam dois gêneros: a tragédia e a comédia. O primeiro é o mais antigo, e retratava a queda de um herói provocada por um erro trágico. Em um paralelo com a dramaturgia, incontáveis histórias de vida podem ser consideradas tragédias, a um ou dois atos de um final incerto. Fora dos teatros também vemos o infortúnio de homens bons, destruídos por um grave defeito. O mundo é um palco, afinal, e agora se inicia uma nova peça.
O herói da vez é um jovem chamado Urso Polar. À primeira vista, ele tem uma vida maravilhosa: é filho de uma família influente, único herdeiro do CEO Jimmy Hopkins, fundador da Fábrica de Bolas de Futebol Hopkins. Não passou fome, nunca lhe faltou dinheiro. Se precisasse de algo, não demoraria para obtê-lo. Urso também era dono de vários talentos, em particular tocar piano, e sempre estava bem arrumado. Pelo o que tudo indicava, ele estava destinado a uma vida boa e feliz.
Porém, é muito fácil dizer que as coisas são maravilhosas quando não mencionam o outro lado da moeda. Urso Polar mal sabia cumprimentar os outros, quem dirá fazer amizades. Sem amigos, sua única companhia era a família.
Isso era pior que ter ninguém. Seu pai era cruel, desalmado, tirânico, frio; todos os insultos do dicionário. Exigia do filho muito acima do que este conseguia; queria um Einstein onde havia um estudante comum. Fora isso, quase não interagia com ele. Para melhorar, era tão ignorante quanto era rigoroso, a ponto de dar cintadas na cabeça de Urso para "a cachola funcionar melhor", geralmente depois do mesmo tirar 9 na prova e não 10.
A mãe de Urso, Frankie Foster era uma mulher adorável. Bombardeava o filho com tanto amor que chegava a ser sufocante. Ela tentava de tudo para evitar aqueles maus-tratos, mas assim que Jimmy desse um grito, se calava e voltava para seja lá de onde veio. Frankie era casada com ele há vinte anos e sabia muito bem do que ele era capaz. Trêmula de ansiedade e de remédios, era uma figura triste, incapaz de parar o sofrimento ao seu redor.
Urso Polar não gostava de incomodar os pais, então costumava passar o dia isolado no quarto. Na infância, ele lidava com a solidão tocando piano e lendo revistinhas. Já que a realidade era uma decepção inescapável, ele guardava no coração o mundo da música e das histórias. No entanto, essas paixões eventualmente se reduziram a brincadeiras sem graça, sem direito a uma despedida. Os gibis acumulavam poeira na estante. Sem Chopin ou Schubert, a casa se calou junto com o piano. As alegrias da vida se desvaneceram aos poucos, e preso nesta existência indiferente, Urso Polar se esgotou. Sem outras alternativas, entregou-se à cama como quem dá-se ao carrasco. Preferia assim. Havia certo alívio no sono sem sonhos, e comparada à vida que ele levava, a inconsciência era o maior presente que poderia receber.
Seus pais não entenderam. Jimmy acreditava que aquilo não passava de frescura dos jovens modernos. Se fosse na época dele, o filho "estaria de pé e trabalhando feito homem". Frankie tentava de tudo para "trazer de volta seu menino"; seus métodos, porém, só serviam para deixar Urso Polar mais desconfortável. Eventualmente, ambos concordaram em deixar aquilo de lado e voltar à rotina normal. Urso voltou a ser arrastado para festas e reuniões com as quais não se importava, voltou a estudar (com grandes quedas nas notas) e a levar broncas sem motivo aparente.
Cansado desse estado patético e sem apoio familiar, Urso Polar procurou sozinho uma maneira de afastar a sua desgraça. Contudo, o mesmo não sabia remediar a sua mazela de forma segura, e, encurralado, percebeu que sua cabeça se desgastava cada vez mais. Ficou terrivelmente frustrado: não importa o que fizesse, nada mudava. Era como se nenhum de seus esforços importasse. Era como se ele fosse imprestável demais para mudar algo. Era como se ele merecesse o que estava acontecendo. Que era melhor ele não ter nascido em primeiro lugar.
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LALAVERSO: Crônicas sem sentido
HumorObra da ESPECULATIVOS COMPARTILHATED UNIVERSO Parte 1 da duologia LALAVERSO Uma coletânea de histórias dramáticas que ocorrem com pessoas muito diferentes, provando como tudo nesse mundo absurdo está conectado. Descubra o passado e os segredos de Pi...