- Io non me vado!
Apesar de mentalizar-se rugindo como uma onça feroz, por trás da capa de "A moreninha", ela tentava inutilmente disfarçar olhos marejados. Estava tudo indo tão bem, por que a transferência deu certo? Por que no último ano antes de sua maior idade? Por que se ela já estava à dez anos perto da família, dos amigos, de uma cidade que gostava e mesmo que não fosse perfeita, mas que conhecia com olhos vendados e mãos atadas?
- Mia nipote...
Por mais que o homem de cabelos grisalhos não demonstrasse com toques físicos, era rendido à sua família. Havia nos olhos castanhos nublados pelo avançar da idade, o mesmo sofrer que banhava o olhar de sua neta. Não só por vê-la prestes à desabar em lágrimas, algo incomum para a menina, mas também porque irá sentir falta. Da Serra das Araras até a Barra do Rio Negro, eram meses de viagem e cinco mil quilômetros de matas e rios, não é viagem para um casal de idosos. O nonno e a nonna só veriam suas netas de novo, no fim do tempo de serviço do Marechal Paixão.
- Io armo um circo nel porto, ma non me vado! Non mesmo se me arrastarem! Che podem fazer de piori?! Sono una donna! Sonno forte! Nessuno colocaria le mani em mim e sairia illeso!
Um sorriso surgiu nos lábios do nonno, ao notar a resistência da menina. Tantas promessas cheias do espiritismo italo-carioca... Nada daquilo se cumpriria, ele bem sabia.
- Tu papa sente tua falta... Tu sorelle já estão lá à tão lungo tempo... Tua mama está solo e precisa de ti...
Por pior que fosse o frio serrano na janela, a sensação de conforto de dormir embalada pela rede era incomparável. Esta é apenas uma das várias vantagens de se manter na fazenda dos avós. Ela não precisava se preocupar com a casa, nem consigo. Sua única responsabilidade eram os animais e os velhinhos com quem morava, por isso estudava muito e devorava todo tipo de literatura para cuidar bem dos dois. Nesta altura, já havia lido tudo que a medicina e a biologia tem para oferecer e recebe novos livros vindos de todo canto do mundo, como presentes dos pais ou das suas amigas. Aliás, só eles se importam o suficiente para mandar presentes. A moça não tem muitas amigas, mas as três que tem são suficientes. Sendo filha do marechal Paixão, vive numa elite muito privada junto aos outros três líderes da Guarda Dourada e à côrte real. Ainda assim, a côrte parece querer excluí-los por serem militares e não nobres. A verdade é que nobreza é um saco.
O cheiro da chuva sempre lhe acalmou e se fosse vendido em frascos, definitivamente, seria o seu perfume. Após dez anos lidando com as propriedades dos avós, nada poderia ser mais normal do que carregar o aroma do clima da serra misturado com um sutil perfume floral, um tanto quanto clichê em protagonistas femininas. Mas dessa vez, (e não digo isso apenas por ser a minha história), não é tão clichê assim. Não se trata de o cheiro meloso, que é encontrado em qualquer frasco sobre as penteadeiras femininas. O cheiro é o mesmo das gotas gélidas que as nuvens derramam sobre as hortências tão características da Serra das Araras. Ainda assim, com um imo tão delicado, ela insiste em descrever-se, tal como todo escritor faz, de forma bruta como pedra que precisa ser lapidada. E nem todo o whisky, poderia tornar a moça mais íntima de si mesma, para saber apresentar-se fidedignamente nas páginas de seu mais recente trabalho, que viria à se tornae sua autobiografia. Por mais familiarizada que estivesse com o gosto do néctar das mentes perturbadas.
Por mais que a morena não consiga, eis a minha tentativa de uma apresentação: os seus pais esperavam avidamente por um herdeiro e tanta predileção, resultou num despreparo para lidar com a bebê: não tinham um quarto, não tinham vestidos, não tinham nem mesmo um nome decidido para a menininha que caiu dos céus. Por isso, ao invés de rosa como de costume, seu enxoval foi amarelo e ao invés de Maria-alguma-coisa, recebeu o nome do avô paterno. Inclusive, a neta e o avô tem muito em comum: a mente de ambos carrega uma excelente memória, uma geniosidade inigualável, e a sociedade inveja a capacidade de camaleoarem-se para dentro de qualquer grupo social sem perder o seu espírito. Ninguém foi capaz de afetar Dom Manoel, apenas o tempo. O tempo tratou de controlar muito bem o velho. Ainda jovem, foi abatido por uma enfermidade e nunca mais foi o mesmo, por mais que tenha sido curado fisicamente. Fé lhe ajudou, até mesmo quando a medicina lhe abandonou para morrer. Foi graças à fé que, mesmo com sequelas, o velho se manteve vivo e se tornou um pastor muito respeitado em toda a cidade de Cabo Frio. Mesmo sendo tão parecidos, ainda havia uma diferença de sessenta décadas que separava os dois e também, embora o seu Manoel seja mais antiquado e acomodado nos bons costumes, sua neta é possuidora de tamanha ânsia por sair do comum. Tão grande é está vontade de inovar, que quando nasceu, revirou toda a dinâmica da família de ponta-cabeça e enquanto as pessoas ao seu redor se dividem em branco e preto, ela veio parda. Cabelos castanhos, olhos castanhos e pele castanha, em tons escuros o suficiente para repudiar o branco, mas também, claros o suficientes para trazer temor aos negros. Apesar de seus tons polêmicos, a menina nunca teve problemas de autoestima. E verdade seja dita: se essa história se passasse no século XXI, os humanos ainda teriam problemas com cores.
Os problemas começaram à lhe abater com a juventude. A morena carrega uma ossatura larga nos ombros e quadris, mas a cintura é proporcionamente afinada, o suficiente para dispensar espartilhos. Ela ganhou uma silhueta curvilínea, alguns números acima do manequim almejado. Era seu maior problema. Não exatamente seu, mas por parte do seu pai. (Mais uma vez, me atrevendo com a verdade, posso garantir que estar acima do peso é algo que ainda pesa, para a figura feminina). Para piorar, sua mãe começou à ter dificuldades com o crespor do seu cabelo. A falta de bons exemplos de mestiças lhe deu repúdio, ao invés de amor pelo seu corpo e por dois anos, lutou para se manter o mais próxima dos padrões possível. Com diversos tratamentos milagrosos dando errado, foi com os ares campestres que reuniu coragem o suficiente para raspar a cabeça e deixar que seus cachos voltassem. A juba curta somada aos iluminados olhos de cacau e a pele de café com leite são uma descrição perfeita do que melhor representa o Brasil: miscigenação. A morena repousa na linha tênue entre o atraente e o aberrante.
E agora, precisa deixar tudo que aprendeu a amar e onde aprenseu a ser amada. Graças ao imperador, seu pai foi remanejado e irá passar um período de serviço no norte para que o governo pudesse elevar a vila da Barra do Rio Negro ao status de cidade. Graças à lábia, o marechal conseguiu levar consigo sua família, e isso inclui sua filha mais velha. A grande verdade é que o Imperador talvez prefira a companhia dos militares, do que dos puxa-sacos reais. O problema de estar com seus pais novamente é o mesmo problema de se querer por um pássaro de volta à gaiola: depois que alçoou vôo, não dá para cortar asas e esperar que o animal fique feliz com isso. Já havia alcançado toda uma liberdade, estava se vestindo como queria, se portando como queria e com quem queria. A primeira coisa que seus pais fariam é lhe garantir um futuro descente e em 1850, um futuro descente para uma mulher é sinônimo de casamento. Casamento é o compromisso mais importante que uma mulher pode assumir e se você foge disso, é porque já tem noção da importância que esta aliança carrega. Não é que não queira se casar, pelo contrário, a menina é rendida ao romantismo. Seu grande amor inalcançável é o próprio Byron, que morreu seis anos antes dela nascer e por mais que lute contra para manter sua postura arrojada, a menina é um poço infindável de amor e carinho. O problema não está no casamento, está na escolha. Ou melhor, em ser escolhida. Por toda sua juventude foi rejeitada, por melhores amigos ou por simples cortejos, não queria passar por isso novamente e muito menos numa época do ano em que todas as outras moças ao seu redor estarão sendo laçadas. Estava começando a achar que seu destino era a solidão, mas ficar solitária na Serra das Araras, era o suficiente para um mínimo grau de satisfação.
- Será felice! Estará bene perché é forte! E soprattutto, estarei sempre aqui para te receber de volta.
As primeiras lágrimas despencaram por seu rosto, das maçãs até o queixo, num balé através das bochechas. Era como ver uma chuva de estrelas cadentes. Com um beijo na testa, o avô se despediu por está noite e deixou o quarto, não sem antes dizer:
- Te quero bene, nipote!
A menina sorriu entre lágrimas e acenou com a cabeça, respondendo:
- Amo-te também, nonno.
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Hortênsia
Historical FictionMuitos vivem grandes histórias, mas apenas escritores podem eternizar-se nas páginas. - Manoela Aprígio. Esta história é uma pequena grande parte da minha vida. Codificada, modificada, reformada, mas ainda assim, minha. Muita coisa será da compreens...