Ainda Não

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A risada de suas irmãs é como a mais afinada das sinfonias. Ainda melhor, nenhum músico poderia compor. E como todos que se aproximavam de Harry, quanto mais próximas as meninas ficavam, mais pareciam se deleitar em suas brincadeiras.

— Ma petite dame, me feriez-vous l'honneur de cette danse ?

Descoberto o interesse de Maria por Paris, o homem se dobrou diante dela, com uma mão estendida, enquanto o quarteto de cordas tocava um ritmo alegre. A pequena estava encantada com o francês perfeito do rapaz e não tardou em por sua mãozinha sobre a palma que lhe foi estendida.

— Duque, você já foi à França?!

Enquanto respondia, ele guiou a baixinha e Mafalda pela mão até o espaço aberto do pátio, em que vários casais dançavam aos saltitos. Ele era o único com duas parceiras de dança, mas dessa vez, seu sorriso tinha a mesma inocência das crianças que lhe acompanhavam e não havia pesar algum em sua alma, porque estava sendo genuinamente divertindo passar o tempo com as moças. Hortênsia ainda tinha um quê de preocupação, conhecia o tipo de Harry e mantinha sempre Margô à vista, mas o pai do rapaz entreteve muito mais sua irmã, com conversas sobre a arquitetura de seu palacete, em Foreigner Hill. Seus dedos passeavam distraidamente sobre o dorso do ganso, o animal estava tão relaxado que dava para sentir a camada de plumas, mais profunda abaixo das penas. Tudo estava bem, sem preocupações, saudades ou mágoas. Foi inevitável à moça, repousar as costas na cadeira e erguer os olhos aos céus, o tom de azul mais lindo do mundo estava estendido sobre sua cabeça e a quantidade perfeita de nuvens brilhava como tufos de algodão no casto sol de meio de tarde. Em alguns minutos, tons de laranja, rosa e roxo começariam à surgir e a paisagem ficaria ainda mais perfeita. Era uma obra divina, tal qual a paz que sentia.

— Obrigada...

Ela sussurrou num suspiro. Sua fé tinha sido o único fino fio que manteve sua mente longe de uma explosão em pedacinhos e se não fosse seu Deus, ela não teria chegado até aqui. Não foi fácil, isto é certo, mas o texto sagrado já havia lhe avisado que não seria. Tudo que lhe foi feito, cada pedido atendido e cada necessidade sanada, foi pelo Altíssimo e para Ele e só poderia reconhecer isso com gratidão, visto que é pequena demais para retribuir de qualquer que seja a forma capaz de retribuir imerecida paz. Certas lacunas no nosso coração, nada neste mundo preenche e Hortensia tem plena consciência disso, mas neste momento, não havia uma única lacuna. Se sentia completa  sentada ali, com um animal nos braços, um rapaz ao lado e suas famílias unidas. Tantas noites passou chorando, tantas vezes foi ninada por lágrimas, agora podia sorrir e sentir-se bem. Apenas bem. Infinitamente bem.

— ...Por tudo isso, muito obrigada.

Sua mente foi tomada por uma série de exaltações e por mais que não manifestasse externamente, sabia que era o Santo dos santos que abraçava sua alma neste exato momento.

Foi então que o sobrenatural aconteceu.

Não havia ninguém por perto, não tão perto quanto precisaria estar para lhe falar ao coração. Uma voz e apenas uma frase. Algumas pessoas ouvem muito menos, às vezes uma ordem, uma palavra ou mesmo, o próprio nome sendo chamado. E aquela jovial, rendida pelo amor de seu Criador e conhecedora de ter suas falhas perdoadas, Hortênsia foi agraciada com uma frase completa.

Ainda não foi isso que eu preparei para você.

Palavras tão simplórias aos olhos humanos, o Rei falaria desta forma? Como... Como... Como um homem fala? Entre tantas possíveis escolhas, todas as línguas terrenas e sagradas, e a escolha para Hortênsia era essa? Como poderia saber que foi mesmo Ele quem lhe falou? Tudo bem, talvez estivesse afastada para ouvir os seus pais lhe falando aos ouvidos. Mas poderia ser um pensamento, uma insegurança, uma incerteza. Até mesmo um sentimento recém-criado morrendo em seu peito pelo seu subconsciente. Porém foi uma palavra certeira demais. Foi uma frase muito exata e resposta perfeita para a sua oração de todo sábado, que fazia em seu quarto já tinha algum tempo: Ó meu Senhor, me prepara um companheiro. E erguia a voz aos céus de joelhos à beira da cama, abraçada ao seu bloco de notas favorito, cujas páginas abertas carregam a lista de tudo que mais deseja nessa vida.

E por mais inútil que possa parecer seu pedido, a moça sabia de seu intelecto, já havia conquistado a posição que queria atualmente. Não por si mesma, é claro! Por pura compaixão divina, mas havia alcançado. Já tinha a família por perto e amigas que amava como irmãs. Nunca quis dinheiro, seria lhe dado tudo fosse necessidade. Seu maior desejo era se casar. Ter um relacionamento de seriedade, cheio de amor para amar e ser amada também. Via casais onde quer que passasse, todas as suas primas tinham alguém e seus primos mais velhos já começavam à ter filhos. Buscou essa aliança em muitos lugares, correu às ruas e cada vez que alguma esperança surgia, se via sozinha em becos sem saída. Com o tempo, seu coração esfriou. Qualquer chama ardente, era abastecida apenas pela paixão à música, escrita e às amizades. Ainda olhava para homens, como qualquer outra menina olha, mas é muito superficial e jamais sentia atração real. Também se apegava demais à quem quer que se aproxime, por isso é tão extrovertida, conhecida e cheia de amigos.
Talvez estivesse seguindo por este caminho com Harry, e agora, por ordem de um ser incalculavelmente superior, isto caiu por terra.

Sentiu seu sorriso desmanchar, mas não haviam lágrimas. Passou os dias, até então, cantando sobre Jó e lendo sobre Paulo, repetia as leis de Moisés e conhecia toda a história de Abraão, Isaque, Esaú e Jacó. Os passos de Jesus acompanhou cada vez que ia à igreja, domingo de manhã. Estava na hora de exercer a fé que alegava ter. Por mais que sua expressão tenha querido se endurecer, ela demonstrou algum mínimo domínio sobre o próprio corpo e se conteve, apenas com seriedade. Um espírito maravilhoso se movia em seu interior e ela não queria deixá-lo se dissipar por bobas irritações. Ao abrir os olhos, baixou a cabeça novamente e se deparou com a sua irmã sorrindo, ao conversar com Damian. Demonstrava um exímio saber sobre o barroco inglês e como uma boa Paixão, dominava a conversação. Margô, pela primeira vez, tinha olhos sorridentes. Para um adolescente, por um sorriso nos lábios é fácil, diante de uma multidão. Todos se tornam cruéis e é um conhecimento social básico, não deixar que eles te afetem. Mas um sorriso nos olhos, é como o renascer da alma. Enfim, a moça alcançou a alegria que tanto necessitava, ao dançar com Harry Edward Walsh. O rapaz era bom. E Maria, tão pequena e tão madura, se divertia como a criança que era, sem precisar sentir constrangimento, acompanhando os dois na música. Seu Pai lhe deu um aviso, mas tudo ainda estava bem. Porque quando Ele age é assim, nunca para provocar mal algum, nunca dando mais do que se pode carregar. Até quando permite a vinda de problemas, inegavelmente, a resposta está junto. E quando queremos fugir, tudo que precisamos fazer, é isso: ir até Ele, para encontrar a solução boa, perfeita e agradável.

Muitas vezes eu errei e muitas vezes me perdoou. Não chegava aos pés de um salmos, mas era de coração sincero como Davi. O ganso saltou de seus braços e foi de encontro ao seu dono, Damian despertou da conversa e tocou a mão da moça, estendida sobre a mesa.

— Cara menina, está tudo bem?

Sua voz também era baixa e serena. Ao se dar conta do que acontecia ao seu redor, ela sorriu. É como se estivesse mais leve. Brevemente, apertou a mão do duque e acenou positivamente com a cabeça. Não emitiu palavras, não emitiu sons, o Superior ainda precisava ouvir dos seus lábios uma resposta e a próxima coisa que fluiria de sua boca, seria exatamente isso. A confirmação de entender a mensagem. Se levantando da mesa, ela ergueu um pouco a saia, para poder correr para o secreto. Estava tão tomada pela presença que não pôde correr, não queria agir por impulso. Nem precisava, afinal é exatamente como dizem as Escrituras: o Espírito se submete ao profeta. Porque Ele não é Deus de confusão, senão de paz. Retomando a postura, ela deixou um sorriso para traz e acenou com a cabeça. Até então, não conseguia se manter quieta. Controlar a boca é o mínimo que faria em troca do sentimento recebido.

Todos viram quando seu rosto resplandeceu e ela saiu, em direção ao seu quarto. Era como se todos soubessem que algo aconteceu com ela e não tinha mal algum nisso. Que vissem! Daria seu testemunho através de ações, sem necessitar o uso palavras. Com a devida postura, cruzou o pátio, adentrou as portas do Paço Imperial e subiu as escadas, entrou no seu quarto, fechou sua porta e apenas com a luz do sol iluminando os aposentos, ela se ajoelhou à beirada da cama. Algumas lágrimas rolaram pelo seu rosto e suas mãos e queixo tremiam, o sorriso não deixou seus lábios em momento algum. Pelo contrário, só cresceu. Sua mente foi tomada por exaltações novamente e do fundo de sua garganta, ela enfim se sentiu livre para louvar. De primeiro momento, um inspirar gutural, nunca havia sido capaz de controlar as emoções por tanto tempo. Quando soltou o ar, sua voz domou o pranto e declarou com toda a fé, a alma e o coração:

— Prevaleça a tua vontade, Abba... Apenas a tua vontade...

HortênsiaOnde histórias criam vida. Descubra agora