○ Capítulo 9 ○

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O mágico e o garoto ficaram uns poucos segundos sem qualquer reação além da surpresa. Apesar de ambos saberem que um dia se reencontrariam, questionavam-se sobre quais condições que os levaram a se ver logo em um local tão ímpar.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou Gon dando fim ao constrangedor silêncio instaurado.

— O que você está fazendo aqui! Ainda mais nesse lugar que é quase no fim do mundo.

— Hum, eu moro aqui nesse "fim de mundo" — o menino arqueou as sobrancelhas.

— Oh..., interessante. — Hisoka olhou para o céu escuro por um momento, tentando imaginar o pequeno Gon vivendo naquele lugar tranquilo e pacífico. Sim, ele conseguia vê-lo morando ali, nem chegou a pensar em tal possibilidade quando Illumi planejou a viagem. Após o ruivo abaixar seu olhar e voltar a observar o rosto do menino, deixou um riso baixo escapar ao perceber a postura mais defensiva do outro e seu olhar atento. — Calma, não vou fazer nada, nem com você e nem com ninguém.

— Não posso confiar em você.

— Oh! Você aprende rápido, isso é bom. Mas estou guardando minhas energias para quando você resolver me enfrentar. Espero que não tenha esquecido...

— Não, não esqueci...

No exame Hunter, o Morrow desfrutou dos talentos de Gon quando este teve a tarefa de persegui-lo em uma das desafiantes provas. Um exercício intenso de caça e caçador. Entretanto, para o mágico, não foi o suficiente, em especial porque Gon ainda tinha muito a aprender e ele não perderia seu tempo com quem não sabia a verdadeira arte de lutar.

Para a sorte de Hisoka, Gon era um garoto teimoso — do jeito bom, e do jeito ruim —, e ele não desistiria tão cedo de recuperar sua honra para com o adversário.

— Amanhã mesmo eu vou embora, quer você acredite ou não. Então fique tranquilo. — o mágico deu de ombros e cruzou os braços.

— Eu também não vou ficar aqui por muito tempo. Eu e o Killua só vamos descansar um pouco na casa da minha tia Mito e depois vamos embora para treinarmos.

O sorriso de Hisoka se desfez e seu coração parou por um breve instante.

— Killua? — sussurrou.

— Sim, você não lembra dele? — Gon inclinou delicadamente o rosto para o lado, em dúvida e leve espanto, abrindo mais seus olhos castanhos e redondos. — Ele fez o exame hunter com a gente e é o meu novo melhor amigo!!

— Amigo...

— É estranho logo você não conhecer ele..., ele é um Zoldyck, uma família de assassinos muito famosa!

Sim, Hisoka sabia muito bem de que família ele pertencia. O mágico descruzou os braços e fingiu arrumar os fios avermelhados de seus cabelos com a ponta dos dedos da mão direita. Seus lábios esboçaram um sorriso leve e despreocupado. Não que ele estivesse se sentindo assim, mas precisava que a inocência de Gon lhe desse mais alguns detalhes.

— E...para onde vocês pensam em ir para treinar? — ele coçou o queixo com o indicador e o polegar.

— O Killua disse que a família dele sempre vai para..., para..., como chama mesmo? Ah, Torre Celestial! — o garoto abriu um sorriso. — Parece ser tradição todos os Zoldycks passarem um tempo da vida lá para treinar, então deve ser o lugar perfeito.

Merda, isso não é bom, refletiu o ruivo por trás de um rosto sereno e neutro. Se ele perguntasse mais, muito provavelmente levantaria suspeitas, e ele não podia subestimar tanto assim a pureza do menino Gon.

— Uau, então eu espero que vocês possam aperfeiçoar os talentos de vocês. — Hisoka sorriu.

— Sério que você não lembra dele? Ele te odeia, mas está logo ali na barraca das gincanas, posso chamar ele!

Não.

A animação se esvaindo quase de imediato do rosto infantil de Gon fez o Morrow temer o pior. Seu "não" pareceu tão desesperado assim? Será que o garoto conseguia ouvir seu coração indo a mil a cada detalhe que recebia do paradeiro de Killua? E que, pior, a qualquer momento ele e Illumi poderiam ter sido vistos pelos dois? Hisoka balançou a cabeça e riu, tentando distrair a mente de tais pensamentos antes de voltar a olhar para o rosto de Gon.

— Como você mesmo disse, ele me odeia, assim como meio mundo, Gon. — começou a dizer. — É noite de festival, vá se divertir, eu preciso ir embora. E espero que quando nos virmos de novo, você já tenha aprendido sobre o verdadeiro poder.

— O...verdadeiro poder? — o pequeno moreno franziu o cenho.

— Tchau, Gon.

Hisoka deu as costas para o garoto e começou a se afastar das ruas onde ocorria o festival. Até estar bem distante da comemoração, ele sentiu o olhar de Gon o encarando por um bom tempo, e apenas saiu dali quando o mágico desapareceu por entre a multidão. Essas crianças..., os picos confiança e a desconfiança extrema que podiam alterar de um momento para o outro chegavam a divertir o hunter.

Porém, agora, as preocupações eram outras.

Como ele pôde se esquecer? Realmente, além de Gon, outro competidor muito lhe chamara a atenção no meio de tantas pessoas descartáveis e inexperientes. Um segundo menino, que visivelmente era o oposto do pequeno moreno. Esse tinha cabelos brancos perolados, olhos levemente puxados de cor azul-safira, rosto mais arredondado, sempre com um skate de baixo do braço fino e — sim, disso o mágico se lembrava bem — avançadas intuições para lutas, o que resultava em ações certeiras quando era necessário o uso de técnicas de combate. Era tão óbvio. Um primeiro Zoldyck esteve por perto dele antes de Illumi.

A Ilha da Baleia não era mais um lugar tão seguro assim, e a cada passo que Hisoka dava para mais perto da pousada, menos ele sabia o que dizer — ou o que não dizer — para Illumi.

Ele poderia perfeitamente contar. Ele contaria nem que fosse único e exclusivamente pelo prazer de ver dois Zoldycks em conflito (e, com sorte, lutando) pela honra manchada de sangue e pelos valores morais perversos que a família carregava. Ambos em uma batalha intensa por suas merecidas liberdades. Sim, Hisoka daria de tudo por uma excitação como essa. Com certeza Illumi não iria conter seu verdadeiro poder e ficaria mais sedutor e ameaçador do que já era. Mesmo que durasse um único segundo, seria magnífico.

Mas...

Em que ponto estava a dita "amizade" que Gon dizia ter com Killua? Será que o garoto se envolveria nesse conflito? E, se quisesse se envolver, Illumi teria piedade dele? As mágoas que o Zoldyck carregava consigo poderiam matar, não apenas Killua, mas até mesmo Gon. Não, Hisoka não permitiria que o assassino matasse alguém com tanto a aprender, alguém que ainda o surpreenderia com tamanho espírito de luta.

Por outro lado, ele poderia não contar nada. Afinal, em apenas um dia eles cumpririam a tarefa que almejavam há um bom tempo. As semanas árduas que o mágico passou no encalço do Lucilfer, como um cachorro faminto atrás do dono cheio de carne, seriam finalmente recompensadas.

E, se já não bastasse, tais circunstâncias ainda tiveram a felicidade de uni-lo a um assassino excepcional. Nada nesse mundo substituiria ou superaria a deliciosidade da aura do Zoldyck, fora o quase sádico deleite de provocações, sangue, mortes, beijos, corações ansiosos, corpos unidos e êxtase de mistérios que construíam nas entrelinhas de seus olhares. Ele faria seu querido Zoldyck voltar a sofrer? Poderia um menino, que sequer busca ter Illumi por perto, acabar com tudo isso?

Era uma das raras vezes, fora de combate, em que Hisoka pensava antes de arriscar tudo.

Que droga, pensar em alguém além dele mesmo era muito mais difícil do que ele imaginava. Tinha se esquecido do quão sacrificante poderia ser.

E então, o Morrow parou de andar. Ele olhou para cima e viu o pequeno prédio da pousada bem a sua frente, encarando-o com a ajuda da luz amarelada dos postes da rua. Quase se sentiu sufocado, engolido pela noite escura que já não parecia mais tão brilhante assim.

Hisoka estava na entrada do simples edifício. E ele ainda não sabia o que fazer.

Alone, with You [EM PAUSA]Onde histórias criam vida. Descubra agora