Ato I

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Any Gabrielly

O som do alarme do despertador do meu celular aciona meu cérebro com um susto terrível.Eu estava sonhando. Estava. Não estou mais. Penso rapidamente em arremessar o celular na parede, o mais estupidamente grossa possível. Penso, logo desisto. É um item caro, essencial na minha vida. Não posso deixar que uma raiva momentânea e passageira me induza a um gesto pelo qual me arrependerei pelo resto dos meses que ainda tenho de parcelas para quitá-lo.

Mas todo esse relato para quê? Para tentar forçar a mim mesma a articular pensamentos racionais e criar coragem de me levantar às quinze para as seis da manhã para treinar. Isso. Treinar. Este horário ingrato não me foi imposto por uma obrigação de trabalho, carteira assinada, salário no final do mês. Este compromisso de acordar neste horário funesto e ir para o meu treino me foi imposto pelo meu professor. É. Concordo plenamente que professores dessa estirpe deveriam ser proibidos por lei. Mas a escolha foi minha, certo? Eu que insisti com minha mãe, desde quando me entendia por gente, para ser matriculada no balé clássico.

Eu tinha apenas cinco anos. Minha mãe deveria ter pensado melhor e refletido que eu não estava de posse de minhas faculdades mentais avançadas.

Enfim, dezessete anos se passaram desde este lapso brutal na minha sanidade, e aqui estou eu, erguendo o corpo cansado do treino do dia anterior para seguir para mais um dia de tortura.

O professor Niky não deixa nada a desejar àqueles mafiosos russos que dão medo nos filmes de cinema. Ele é assustador. Defina aí um cara mau. É ele.

Tudo bem, eu posso estar exagerando um pouco além da conta, mas isso sempre acontece a esta hora da manhã, especialmente quando estou com a escova de dentes enfiada na boca, ao mesmo tempo em que tento organizar a bagunça do meu cabelo. Coques. Isso. Lá vem o grande momento do dia. Preparar esta juba enfurecida de cachos castanhos em um único e elegante coque no alto da cabeça. Sem um fio sequer fora do lugar. Obrigada, gel de cabelo.

Sem este item essencial, esta tarefa não seria tão fácil de executar. Não podemos também deixar de agradecer aos 6.578 grampos que estão enfiados por dentro do coque. Obrigada, pequenos torturadores!Depois que meus olhos zumbis conseguem aprovar o penteado, concordando com o reflexo no espelho, volto para o quarto e pego minha mochila.

O quê? Você acha que faltou eu dizer que troquei de roupa e me arrumei? Não. Eu já dormi com a roupa com a qual teria que sair hoje pela manhã, exatamente para me permitir um pouco mais de sono. Eu contei por acaso que ontem foi dia de treino? Então, agora você entende o porquê de cada minuto se tornar um presente bem-vindo quando está associado com a palavra descanso.

Eu, por acaso, contei que o treino do dia anterior teve a durabilidade de adoráveis nove horas? Com apenas um pequeno intervalo de pausa para o almoço e um lanche rápido no período da tarde, devidamente regulado pela assistente do professor? Não falei? Falha minha.

Some a isto uma rotina diária nas últimas semanas. Agregue a isto as poucas horas de sono que meu pobre corpo está tendo. Sim. Eu estava em um estado semi vegetativo ambulante. Entendia perfeitamente o real sentido da expressão "morta-viva".

Desci às pressas a escadaria do meu prédio e atravessei a rua rapidamente em direção ao paraíso: o Starbucks logo ali na esquina. Graças a Deus, em Nova York você consegue esbarrar com este estabelecimento com uma frequência assustadora. É o café extraforte dele que me mantém acordada e ligada no que o dia me promete.

— Hey, Sra. Bucks! — cumprimentei a gentil atendente, que já devia trabalhar ali desde a fundação do mundo. É claro que o nome dela não era esse, mas adoro dar apelidos exclusivos aos meus amigos.

— Any! Mais um dia de trabalho intenso? — ela perguntou enquanto me passava o café e um saquinho com uma rosquinha. Mulher sábia. Entendia minha rotina de ir comendo enquanto caminhava para o estúdio, na tentativa de já queimar as calorias e o professor maldito não perceber um grama de gordura extra em mim.

— Yeap. Mais um daqueles...

— Você vai me avisar a data da apresentação, não é? — ela perguntou com carinho.

— Você será a primeira, pode ter certeza!

Acelerei os passos, tomando o cuidado de não esbarrar nos pobres transeuntes daquele horário ingrato, ao mesmo tempo em que soprava o líquido dos deuses para que eu pudesse tomar sem o risco de queimar minha boca.

Eu te digo uma coisa: café é maravilhoso. Mas quando está pelando, ele não deixa uma sensação agradável na mucosa que ele passa queimando como lava vulcânica...Doze minutos de caminhada, um café bem tomado, uma rosquinha degustada e um ânimo redobrado depois, eu abro as portas do estúdio e subo a escadaria correndo novamente, na tentativa vã de chegar antes do professor. Por algum acaso eu disse vã? É isso aí. O professor já estava me esperando com os braços cruzados e um sorriso assustador.

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