Ato VI

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Já passava das oito horas da noite, e eu apenas permitia que meu corpo descansasse no sofá macio da minha casa. Quando cheguei, mais cedo, consegui, com um certo custo, retirar as sapatilhas destruídas e quase nem chorei quando vi o estado dos meus pés. Pés de bailarinos eram feios. Isso era fato. Não havia como mudar esta verdade. Anos e anos de esforço, tração, impulso e movimentos impactantes tendem a fazer isso.

Os ossos ficavam moldados por tantos anos de treino nas pontas, os dedos dos pés eram recheados de calos renovados por cima de calos cicatrizados. As unhas ficavam roxas pelos impactos. Enfim, meus pés eram feios. E quando eles tinham feridas abertas, eram mais feios ainda.

Paciência. Eu nunca teria aqueles pés lindos de comerciais de esmaltes ou sandálias chiques.

Essa foi a minha escolha.

Entrei na banheira com a água mais escaldante que consegui, joguei quase um litro de óleo de cânfora e me enfiei com sapatilha e tudo. É óbvio que ardeu até a alma quando a água perfumada penetrou no tecido da sapatilha e encharcou o já ressecado material ensanguentado.

Deixar que ficasse úmido e amaciasse era minha intenção, para somente assim eu começar a retirar a maldita dos meus pés. Só então soltei os esparadrapos em farrapos que não protegeram meus pés do tormento do dia.

Como eu disse, me senti uma heroína de romance épico por não ter chorado convulsivamente. Acho que somente machuquei meu lábio inferior quando travei os dentes para evitar um grito estridente.

Não queria que a Sra. Janussi, a vizinha da frente, tivesse um ataque cardíaco pensando que fosse algum personagem saído de um filme de terror. Ela tinha a tendência de achar que a Samara, do filme O Chamado, podia aparecer a qualquer momento em sua televisão e sempre que escutava algum grito, acabava indo bater na minha porta.

Depois de ficar mais de uma hora na pequena banheira do meu apartamento, consegui, por fim, vestir um moletom confortável e uma regata desbotada dos Knicks. E nada de meias.

Executei o ritual básico de passar um unguento logo depois, sabendo que não surtiria efeito algum sobre as feridas, mas ao menos aliviavam o ardor.

Fiz um lanche rápido e manquei pelo apartamento sem pudor algum. O apartamento era meu.

Eu estava sozinha e podia curtir minha agrura sem nenhuma vergonha. Até derramar algumas lágrimas eu podia por conta das dores.

Estava quase cochilando ao assistir um programa de dança quando ouvi uma batida suave na minha porta. Estranhei quem poderia ser, já que eu não tinha visitantes frequentes no meu apartamento. Era isso. Eu era uma reclusa totalmente focada no balé. Praticamente não dava abertura para novas amizades ou uma conquista de vez em quando.

Por favor, que não seja a Sra. Janussi. Por Favor!Arrastei o corpo alquebrado até a porta e abri sem nem sequer checar o olho mágico. Eu não entendia a utilidade daquele orifício na porta quando a imagem que ele transmitia através do vidro era tão distorcida que você não poderia adivinhar a identidade da pessoa que estava ali.

Na verdade, a pessoa ganhava características assustadoras.

Quase caí dura quando vi quem estava à minha frente. Josh Beauchamp, com uma caixa de pizza em uma mão e uma sacola na outra. Se isso não fosse mais estranho, o sorriso em seu rosto deixava a imagem ainda mais surreal.

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