Ato X

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É claro que, como toda garota de vinte e poucos anos normal que se preze, independente, que vive sozinha, longe dos pais há anos, e que é mais teimosa do que uma mula manca – embora eu não saiba dizer por qual razão uma mula manca poderia ser teimosa, ou qual a razão de ela ser manca – lá iam meus pensamentos ao além...

Onde eu estava? Ah, sim. Claro que não fiquei com a bunda sentada em casa apenas esperando o homem desejado chegar, como uma boa garota obediente.

Quando acordei no dia seguinte, conferi se meu corpo ainda funcionava perfeitamente, as articulações ainda podiam atingir suas amplitudes de movimento e tudo estava nos conformes, com exceção das lesões bolhosas nos pés, mas eeeei, já nem havia sangue!, o que foi ótimo.

Passei mais uma camada de pomada cicatrizante e embalei os pés em uma atadura própria,colocando um sapato confortável, horrendo e assustador, mais conhecido como Crocs, de cor bem berrante e ultrajante, rosa néon, ajeitei minhas roupas, conferi a mochila e saí.

Eu não chegaria no horário ingrato que o professor Niky estava exigindo, mas também, se ele reclamasse, eu o mandaria pastar e ir tomar banho em soda cáustica fervendo, depois de descer em um tobogã de giletes enferrujadas. Claro que eu faria aquilo em pensamento, porque não era otária e imbecil e não estava querendo perder minha vaga há tanto tempo almejada e trabalhada na companhia.

Passei no Starbucks e peguei meu copo com a Sra. Bucks, minha adorável atendente.

Caminhei placidamente pela rua que me levaria ao estúdio, sempre ao som potente dos fones de ouvido Beats, que me conectavam à música e me desconectavam do mundo ao redor.

Cheguei exatamente às 7:42h.

O professor Niky olhou chocado para o meu estado.

Talvez tenha sido porque eu estava degustando ainda um pedaço de donuts.

— O que é isso? — perguntou aos gritos.

— O quê? — Olhei ao redor, tentando descobrir se era comigo aquela irritação toda.

— O que você está comendo? E chegando nesse horário, quando todos já estão ensaiando! —continuou gritando. O russo estava ficando mais evidente, me levando a crer que realmente o homem poderia ter uma herança real.

— Isso é um donuts, meu café da manhã — respondi calmamente, enfiando o último pedaço e lambendo os dedos. Ignorei as risadas dos colegas. — E cheguei neste horário porque estava  sem condições de chegar mais cedo. Além de não ter condições de treinar em pontas hoje, professor.

Quando eu disse aquilo, o professor Niky adquiriu um tom de vermelho preocupante no rosto.

— Você está de brincadeira?

— Não, senhor.

— Então?

— O treino ontem com Josh Beauchamp foi exaustivo ao extremo e meus pés estão com lesões abertas — falei com sinceridade. — Se eu treinar hoje, o senhor terá que arranjar outra bailarina para me substituir no espetáculo, pois eu realmente não estarei em condições. Há um limite para o corpo, e o meu foi atingido ontem. Não estou dizendo que não vou treinar nada hoje, vim executar os passos e a coreografia. Apenas não posso fazer a ponta — falei e esperei.

O homem respirou fundo vinte vezes antes de chegar perto de mim.

— Me mostre!

Sentei-me no chão sem cerimônia, porque bailarinos não fazem cerimônia dentro de um estúdio de balé. Eles se sentam em qualquer lugar mesmo. Na porta da sala, no meio, contra a parede. Onde houver um espacinho, o infeliz poderá se espremer e se sentar.

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