Arrependimentos

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O dia da apresentação estava se aproximando. O reencontro com sua família também. A ansiedade começou a ficar insuportável.

Antônio e seus pais continuavam sumidos. Aquilo não podia estar certo, mas o que Davi poderia fazer? Decidiu procurar Cleonice e perguntar se ela sabia de algo.

— Larissa estará fora por alguns dias — explicou ela sem dar muita importância à pergunta. — Não sei o motivo e nem acho que precise de um. Férias remuneradas era lei antigamente, sabia?

A governadora ficou olhando para o nada durante um instante, depois sorriu:

— Não espalhe — disse e voltou para o que estava fazendo.

Se a ausência era temporária, não tinha com o que se preocupar. Ele voltou ao trabalho e depois foi para casa.

— Você já tirou férias, Laura? — perguntou enquanto a ajudava com a louça.

— Claro... — respondeu ela, sorrindo de um jeito engraçado, como se debochasse de si mesma. — Teve uma vez que tive febre e fiquei sem trabalhar por quase quatro dias.

Davi riu com cara de pena.

— Nós também quase nunca parávamos — disse ele se referindo ao trabalho no milharal. — Mas quando eu era criança, lembro que minha mãe adorava viajar. Uma vez fomos até uma cachoeira longíssima. Foi um dia de caminhada, acampamos por duas noites, e depois voltamos. Aparentemente naquela época meus pais podiam parar de vez em quando.

Alguém bateu a sineta da cantina e Laura foi ver do que se tratava. Davi escutou uma voz baixa, com sotaque familiar, dizendo algo que não pode entender. A voz de Laura veio em seguida:

— Desculpe moça, já encerrei por hoje.

— Eu sei — disse a outra voz que era feminina e parecia abatida. — Me perdoe de entrar assim. Eu não tenho dinheiro, meus filhos estão passando fome porque não consigo trabalho. A senhora tem qualquer resto de comida que possa me dar?

Laura passou pela cozinha, olhou para Davi com cara de pena e seguiu até a dispensa.

Davi ficou curioso pois o sotaque da mulher lembrava um pouco o de Rafaela. Foi até o salão e a cumprimentou com um gesto. A roupa dela também lembrava a da menina: uma camiseta cinza com desenho de flores desbotadas e diversos buracos.

Laura veio em seguida com uma caixa de mantimentos e a depositou nos braços dela.

— Deus que abençoe a senhora — disse a mulher enfatizando o som da letra "e" em cada palavra. — Estamos em um barraco meio descoberto, ainda não consegui comprar telhas, nem comida, nem nada. Tá difícil, sabe...

— Dinheiro eu não tenho para te ajudar. — Laura apontou em direção à caixa. — Hoje só tenho isso aí mesmo...

Davi se pegou pensando nos filhinhos dela, com fome, provavelmente frio e medo das trovoadas, esperando por ela cheios de esperança. Conhecia a dificuldade de se conseguir um emprego sendo uma pessoa simples, sem estudo nem roupas apresentáveis.

Sentiu o frio do metal se comprimindo na mão fechada dentro do bolso. As duas moedas que, com muita resistência, conseguira poupar. Aquela prata, apesar de não ser muita coisa, seria suficiente para algumas roupas e um pouco de comida, coisa que a família da moça talvez necessitasse com urgência. Mas aquele era o dinheiro que pretendia entregar aos tropeiros no fim de semana, para que pudesse ver o seu pai, sua mãe, Matheus e Melissa, depois de seis meses longe de casa. Apertou-as com força e as deixou onde estavam.

A mulher agradeceu outra vez e foi embora.

Durante sua dura infância, vivida em grande parte debaixo do sol da roça, Davi nunca foi de se lamentar. Mesmo depois de crescer e passar por situações ainda mais duras, não era de seu feitio remoer os percalços da vida. Aceitava que precisara passar por tudo o que passou para chegar onde chegou. Mas, naquela noite, quando se deitou no colchão improvisado e percebeu que as trovoadas prenunciavam uma tempestade violenta, chorou de arrependimento. O choro veio novamente no dia seguinte, quando inutilmente procurou por aquela moça, sem saber que nunca mais voltaria a vê-la. Teve de aceitar o seu erro. O choro não se repetiu, mas jamais fora completamente superado.

Fim do mundo e chapéu de palha (Vencedor do prêmio Wattys 2022)Onde histórias criam vida. Descubra agora