Com todo meu amor

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Ao chegar na sua antiga casa Gabriel tenta encontrar seu vizinho na janela do quarto, o Jonas escrevia avisos em pequenos cartazes para ele e colava lá, como uma brincadeira particular dos dois, ele subiu as escadas até seu quarto no sótão e olhou confiante pela janela, havia mesmo um cartaz, só que bem maior que o normal, branco, cobrindo toda a janela, possuía apenas uma frase escrita com piloto preto " Cuidado com o CEM ". Gabriel não entendeu o aviso, que mal o número cem poderia fazê-lo? Ainda assim guardou na memória o último cartaz do seu melhor amigo, Jonas não apareceu na janela aquele dia, e mesmo com o Gabriel indo até lá e batendo a porta, não havia ninguém em casa, iria embora sem se despedir, não só havia perdido seus pais, mas também uma das únicas pessoas que o conhecia.
Enquanto arrumava suas roupas em casa, Gabriel se lembrou da sua mãe, de tudo o que ela lhe dizia, do quanto ele havia aprendido. Lembrou que um certo dia ela havia chegado em casa triste, chorando enquanto assistia um programa qualquer, puxando o fio de lã do cobertor azul que cobria suas pernas, ele tentou descer as escadas de fininho, mas o degrau do meio sempre rangia, entregando quem passava.
_ Mãe, tá tudo bem?
_ Gabe! Não me assusta assim. Vem até aqui.
Ele senta ao seu lado e repousa a cabeça no colo da mãe, buscando conforto.
_ Sabe filho, eu quase nunca falo do seu pai, mas o João era um médico incrível, as pessoas vinham do mundo todo para se consultar com ele, o João salvou muitas vidas. Me lembro dele pegar plantões enormes no trabalho e chegar de madrugada, mas eu sempre o esperava...
_ E você ficava acordada até tarde? Eu nem posso passar das oito.
Ela sorri sem resposta.
_ O que ele curava mãe?
_ Corações, ele curou o meu, nem sempre eu tive o mesmo coração, ele me salvou, foi assim que nos conhecemos. Ele me trouxe rosas todos os dias enquanto eu me recuperava, certo dia até um balão, disse que um palhaço havia dado pra ele, foi aí que eu me apaixonei.
_ Por causa do balão?
_ Não pelo balão, por ele ir me ver todo dia, eu não me importava com os balões ou com as rosas, só com a companhia dele.
Gabriel faz uma cara estranha sem entender
_ Sabe porque eu estou te dizendo isso Gabe?
_ Não, porque?
_ O amor deve ser demonstrado, quando amamos alguém só queremos o bem dela, quero que você entenda e me escute.
Gabriel paralisa prestando atenção.
_ Jamais aceite menos do que você merece querido, o mundo tem muitas pessoas más, mas quem te ama sempre vai querer o seu bem, se você souber identificar essas pessoas, as que te amam de verdade, vai estar sempre seguro, mesmo que eu não esteja aqui.
Gabriel pouco entendeu tudo aquilo, mas ficou fascinado pela forma como sua mãe falou, então guardou cada palavra.
Seus pensamentos são interrompidos com um chamado da Margot.
_ Está pronto? Temos que ir.
_ Tudo bem, eu estou pronto.
Eles descem as escadas e caminham até o carro, despedindo se da casa.
É estranho imaginar como tudo pode mudar da noite pro dia, é tudo tão volátil, brincamos, ouvimos conselhos da nossa mãe e no dia seguinte a vida chega ao fim, por acaso, ou não.
Gabriel enfim parou pra pensar que nada naquele acidente foi por acaso, tudo começou quando ele saiu de casa, não! Tudo começou quando tocou aquela garota.
_ Aí! Para, por favor.
Ele exclama espontaneamente enquanto caminha até o carro.
_ Tá tudo bem querido? Está se sentindo mal?
_ Eu... posso usar o banheiro antes de irmos?
_ É claro, vai lá, eu te espero no carro.
Gabriel não estava com vontade de ir ao banheiro, só havia sentido algo ruim, um sentimento horrível e inesquecível, o mesmo sentimento que matou sua mãe, a dor, uma dor que não o pertencia.
Ele fingi ir ao banheiro e atravessa a casa escondido, podia sentir a presença daquele sentimento, era inexplicável, conseguia controlar melhor agora, podia ver de onde vinha mesmo de olhos fechados, chamando por ele como um sinalizador vermelho e luminoso, saindo da casa ao lado.
80 segundos, esse era o tempo que a Téia conseguia ficar sem respirar, 80 segundos e tudo ficava escuro, é claro que essa era uma informação que ela preferia não saber, mas havia chegado em casa tarde demais naquele dia, a porta da frente estava aberta e seu pai a esperava sentado na poltrona da sala.
Tentou entrar devagar, era invisível, ele jamais a veria, foi o que pensou.
_ Eu sei que está aí Téia, esqueceu que trabalho com sistema de segurança? Notei que havia chegado desde que pisou na grama.
_ Pai me desculpa, eu prometo que foi a última vez, eu só queria me sentir uma criança normal.
Ele levanta da poltrona e caminha em direção a voz dela, segurando o cinto com um olhar obscuro.
_ Você não é uma criança normal, eu não precisaria instalar um sensor de movimento se fosse, não ouviria que sou louco, e não teria perdido a Jenny, quantas vezes eu tenho que te dizer? você não é normal!.
Ele a segura pelo braço e arrasta ela até o porão, Téia se sente agradecida por não ser o cabelo, doía mais quando ele puxava seu cabelo.
_ Eu vou te ensinar a se comportar.
Ela tenta se soltar antes de entrar no porão mas ele aperta seu braço ainda mais forte. Não conseguia parar de pensar em todas as coisas que um cinto pode fazer, em breve não só o seu braço estaria vermelho e machucado. Em uma tentativa desesperada ela puxa o cinto da mão dele, quando Robert joga ela no chão do porão ambos caem, Téia e o cinto, mas nem um dos dois agora podia ser visto, ela havia tornado o cinto invisível.
_ Garota tola, acha que eu preciso do cinto pra isso? Ou te ver pra saber onde está?
_ Eu te vi quando ninguém mais via, sou o único que te conhece de verdade.
Ele segura o pescoço dela e a sufoca, jogando o corpo contra a parede.
_ Viu? Eu sempre sei onde você está.
Sentiu os tijolos machucar suas costas no impacto, tentou se debater e correr mas não alcançava o chão, Robert havia erguido seu corpo e apertava seu pescoço cada vez mais.
_ Você não entende? Ninguém no mundo vai te amar, ninguém além de mim.
Téia pensou no quanto o amor doía, agora ela sentia, o amor era uma mão gélida que machuca, um amor sufocante, angustiante, amedrontador.
E assim os segundos se passaram, 1...2...3... e ela se debatia, 4...5...6... e seu corpo sofria, mas ao passar de vinte segundos Téia não mais resistiu, ele tinha o dobro do tamanho dela, então se deixou levar pela dor, o tempo passou e em 80 segundos ela desmaiou.
Robert soltou seu pescoço e subiu as escadas, sem olhar para trás.
Gabriel ficou horrorizado ao ver a cena da janela do porão, aquele homem sufocando a garota que ele havia ajudado, pensou em entrar para salvar a vida dela mas era inteligente e notou não ser forte o bastante, talvez se chamasse a Margot ela pudesse ajudar, não! NInguém entenderia, não era como se houvesse alguém ali, nem ele mesmo via, mas sabia que ela estava lá, conseguia ver a luz que Téia emanava, uma luz vermelha e dolorosa que gritava por socorro. Esperou o homem subir as escadas e entrou pela janela, ao colocar os pés no chão sentiu o ambiente mudar para algo sombrio, o porão era escuro, úmido e o chão frio, nada de bom acontecia ali.
_ Oi, consegue me ouvir? Fala comigo, eu estou te vendo, eu estou te vendo!
Téia permanecia inconsciente, Gabriel se lembrou dos livros de medicina que leu a alguns anos e pensou em fazer o que viu no capítulo de primeiro socorros, reanimação cardiorespiratoria, isso talvez ajudasse, mas nunca havia praticado, esticou os braços e encostou a palma das mãos no peito dela, sentiu que estava fazendo errado e podia machucá-la.
_ Ai meu Deus o que eu faço, pensa, pensa.
Se lembrou de uma ilustração no livro, era como duas pessoas se beijando com alguns sopros, " Respiração boca a boca ".
_ Tá, não deve ser tão difícil.
Ele tampou o nariz dela e soprou na sua boca algumas vezes, mas sem sucesso.
_ Vai, por favor reage.
Ele tenta mais uma vez e nota a mão dela se mecher.
_ Isso! Tá tudo bem, consegue me ouvir?
_ Você... você me salvou.
_ Acho que é melhor você não falar muito, respira tá bem.
_ Qual o seu nome?
_ Gabriel, e o seu?
_ Téia.
Eles se sentam e depois de alguns segundos em silêncio, ambos dizem em uníssono.
_ Eu...
_ Tá, pode falar.
Gabriel responde deixando Téia recuperar o fôlego.
_ Eu lamento que isso tenha acontecido, esse homem parece uma pessoa horrível.
_ Ele não é, ou não era, não sei mais o que pensar, é o meu pai.
_ Então porque ele te trata assim?
_ Eu o desobedeci, não posso sair de casa, as pessoas não me aceitariam, só o meu pai me ama.
E naquele momento Gabriel se lembrou de tudo o que sua mãe havia dito sobre o amor, pela primeira vez entendeu o significado.
_ Isso não é amor! Quem nos ama quer o nosso bem, ele não quer o seu, ninguém que te ama vai te tratar assim.
Téia talvez fosse nova demais pra entender, assim como o Gabriel também era, mas ainda assim acreditou nele, já havia apanhado demais para notar que aquilo não era o melhor pra ela.
_ Como você me encontrou? Ninguém pode me ver.
_  Eu vi a sua dor, acho que de alguma forma quando toco em alguém, sinto o mesmo que ela.
_ Você também me viu naquele dia?
_ Mais ou menos, eu te vejo melhor agora.
Ele se aproxima e toca no rosto dela, passando a mão pelos seus traços.
Ela se afasta assustada.
_ O que tá fazendo?
_ Desculpa, eu só queria saber como você é.
_ Como assim?
_ Você nunca se perguntou como é sua aparência?
Téia jamais havia pensado nisso, passava tempo demais se anulando e se sentindo ainda mais invisível, graças ao seu pai.
_ Tá bem, eu vou te dizer, fecha os olhos.
Ele volta a passar a mão suavemente sobre o seu rosto.
_Você tem um nariz pequeno e olhos puxados.
Ele continua passando a mão, como um carinho.
_ Seus lábios são grossos, assim como os meus, e seu cabelo...
Eles são interrompidos por um grito que vem da casa do Gabriel.
_Gabriel cadê você? Temos que ir!
_ Droga, eu tenho que ir.
_ Espera, pra onde você vai?
_ Também não sei, chamam de lar adotivo.
_ Mas a gente não acabou, você não me disse como o meu cabelo é.
_ Cacheado, como o meu, a gente se parece.
Gabriel se levanta e vai até a janela.
Téia sorri, mesmo sabendo que ele não notaria, se sentiu vista de novo, Gabriel era bonito, com olhos castanhos e um sorriso gentil,  nem todas as pessoas eram más, e talvez ela não fosse tão estranha, agora sabia sua aparência, e gostava dessa sensação.
_ A gente vai se ver de novo?
_ Acho que não, eu não sei pra onde vou, você também não devia ficar.
Gabriel sobe na cadeira, abre a janela e se prepara pra sair.
_Espera!
Téia toca a mão dele e ver seu volumoso cabelo cacheado mudando de cor, de vermelho pra rosa claro.
_ Você não precisa sentir só sentimentos ruins.
Gabriel fica corado, com cara de bobo apaixonado.
_ Obrigado por isso.
Ele sorrir e vai embora com uma aparência feliz.
Existem sensações inexplicáveis na vida, a de se sentir observado, ou sentir que algo ruim vai acontecer por exemplo, mas se essas sensações são como um calafrio, naquele dia Téia sentiu, era tão forte que fazia todo seu corpo se arrepiar, enquanto via o Gabe indo embora ela soube, e entoou.
_ Nos encontraremos de novo.

Força Zazel - Os Escolhidos Onde histórias criam vida. Descubra agora