Maria entrou tão brava em casa que quase não notou o cabelo dele.
_ Como foi hoje filho, se divertiu?
_ Sim mamãe, fiquei lendo, como sempre.
_ Lendo né, e o que leu?
_ Um livro qualquer, o nome era...
_ Já chega! Cansei de ouvir suas mentiras, te vi na rua quando cheguei, eu mal te reconheço agora. Quantas vezes te disse para não sair de casa...Aos poucos Gabriel parou de ouvir, a voz de sua mãe agora estava distante, não conseguia se concentrar.
Existe algo intrínseco no silêncio, o silêncio dos pensamentos, das conversas ou dos sentimentos são momentos raros, tão raros que mal apreciamos, mas não o Gabriel, ele estava familiarizado com o silêncio, nunca havia sentido nada tão intenso que se lembrasse, dor, alegria ou até mesmo raiva, mas algo mudou aquele dia, agora Gabriel sentia, e não era remorso por ter mentido, nem medo da sua mãe, me arrisco a dizer que naquele momento, Gabriel sentia apenas um sentimento, a dor, uma dor forte, inexplicável e duradoura.
_ Aiiii
_ Tá tudo bem filho? Alguém te machucou?
_ Para!!! Por favor para, tá doendo!
Maria o abraçou, nunca havia visto seu filho com dor antes, Gabriel sempre foi um exemplo de serenidade, quando era bebê não chorava, era quase impossível saber suas necessidades, Maria nunca havia se preocupado, não era tão estranho, não para um anjo. Ela liga para a ambulância e enfim ver o cabelo ruivo, mas estava preocupada demais para contestar.
Minutos antes na casa vizinha, Robert chegava do trabalho, ocasionalmente sentindo que algo havia acontecido, seria mesmo ao acaso?
Devo alertar caro leitor, que essa não é uma história feliz, nada aqui é por acaso, tudo sempre está interligado, mas se de alguma forma você acredita no acaso...
Coincidentemente Robert chegou e notou algo estranho aquele dia, a casa não estava como ele deixou e Téia parecia mais quieta do que o normal.
_ Téia, está tudo bem? Quase não disse nada desde que cheguei, eu trouxe um lanche mas você mal tocou.
_ Sim papai, não estou com fome.
Téia responde com dificuldade, ainda estava sentindo dor e tentando evitar algum gemido.
_ Tem certeza de que está tudo bem? Sua voz parece meio abatida.
_ Eu estou bem
_ Não está escondendo nada de mim, está? Sabe que pode me contar tudo filha, a gente resolve.
Téia sentiu conforto em suas palavras então decidiu se abrir.
_ Eu pulei da janela do quarto e acabei me machucando, eu só queria brincar como as outras crianças.
_ Você não é como as outras crianças, não entende? Essas trancas, a casa, tudo é para te proteger, o mundo é do mal Téia, ninguém nunca vai te ver, e sabe o que as pessoas fazem quando encontram alguém como você?...
Téia já não sentia mais o conforto de seu pai, notou sua afeição mudar, ele estava irritado, chateado, como se quisesse lhe ensinar uma lição. Ela sabia que não era algo bom.
_ Não sabe dizer não é, mas eu sei.
Ele se aproxima dela enquanto fala, como se pudesse vê-la, mas aquela altura Robert já não precisava, sabia exatamente onde ela estava, o convívio lhe ensinou os passos dela.
_ Eu vou te mostrar o que iram fazer com você.
Ele puxa o cabelo dela, derruba a cadeira, e arrasta seu corpo pelo chão até a escada do porão, com uma raiva inexplicável. Téia se debate tentando sair, mas Robert tinha uma boa pegada e estava irritado.
_ Você não sabe quanta dor eles podem causar, mas eu vou te mostrar, vou mostrar o que acontece se me desobedecer de novo.
Robert a arrasta pelas escadas segurando-a pelo cabelo, Téia tenta escapar mas quanto mais se debate mais agressivo ele é, suas pernas batem nos degraus da escada, ela tenta impulsionar para derrubá-lo na descida mas ele é muito forte e não desequilibra, Robert a joga no chão do porão e retira o cinto da calça.
Eu poderia dizer todas as coisas horriveis que aconteceram naquele porão, mas você se impressionaria com tão desumano uma pessoa pode ser, então direi apenas a quantidade de coisas que um cinto pode fazer, pois vai muito além do que prender uma calça e Téia sabia disso. Um cinto pode te enforcar até te deixar quase inconsciente, te bater e deixar marcas pra toda vida, te amarrar e bater sua cabeça na parede até você gritar, mas não é só um cinto que faz tudo isso, um objeto não tem vontade própria, ele é tão ruim quanto quem o usa.
_ Aiiii. Para!!! Por favor para, tá doendo!
_ Você sente agora?! O mundo é cruel Téia, e ninguém vai te ajudar, ninguém além de mim.
Robert sobe as escadas e a deixa amarrada no porão, sozinha, no escuro e com medo.
Maria fica inquieta, a ambulância está demorando e Gabriel não parava de se debater e gritar, estava sofrendo com a dor de algo que ela não entendia e não podia esperar pra ver, então pegou seu carro as pressas, colocou ele no banco de trás e dirigiu para o hospital o mais rápido que podia, Gabriel continua gritando de dor então ela se vira para acalmá-lo.
_ Vai ficar ficar tudo bem meu amor, aguenta mais um pouco, já estamos chegando.
Nesse meio tempo um outro carro bate ao lado do seu e causa uma acidente, o carro capota e bate em uma árvore saindo da estrada.
Gabriel acorda de ponta cabeça preso no cinto, está ferido e não consegue se soltar, mas já não está sentindo tanta dor, sua mãe não está mais no banco da frente, se quer está no carro. Ele luta para sair quando escuta uma voz se aproximando.
_ Calma, eu vou te tirar daí.
Era um homem mais ou menos da idade de sua mãe, de pele clara, um olhar preocupado e cabelos grisalhos.
Ele faz força no cinto tentando soltá-lo, mas sente dificuldade em alcançar a trava, então dá a volta no carro e entra se arrastando pelo outro lado.
_ Você consegue me ouvir? Eu vou contar até três e faremos força juntos ok?
_ Fica comigo, vamos contar juntos está bem?
A fumaça aumentava e se tornava cada vez mais difícil respirar, Gabriel não sabia por mais quanto tempo podia aguentar.
_ Vamos puxar no três.
_ 1... 2 ... 3!
Eles puxam o cinto e soltam a trava, Gabriel sai cambalhotando em meio a fumaça mas quando olha pra trás em busca do homem que o salvou, não consegue vê-lo, a fumaça estava muito densa e cobria todo o entorno envolta do carro.
_ Vai, não se preocupa, eu tô logo atrás de você.
Ele se afasta e uma grande explosão cobre o ambiente. Gabriel volta para a pista e olha para a mata em chamas, quando vê sua mãe próxima a uma árvore, mas já não era a mesma, seu corpo estava em um estado desumano, desmembrado e sem vida. Quando o socorro chega, Gabriel se sente mal por não estar triste, talvez pelo choque ou por tudo ter acontecido tão rápido, agora nada sentia, sem dor, tristeza ou medo, nada.
Dois corpos são retirados do local, Gabriel é levado ao hospital onde mais tarde fazem algumas perguntas, mas foi tudo muito rápido, um trágico acidente, não havia o que responder nem mesmo o que fazer.
Dias depois, uma mulher vem visitá-lo.
_ Olá Gabriel, meu nome é Margareth, mas pode me chamar de Margot, todos me chamam assim.
_ Oi, o que aconteceu com a minha mãe?
A mulher vira o rosto como quem lamenta.
_ Ela morreu não foi? Pode me dizer, eu aguento.
_ Sim querido, você estava de cinto e isso salvou sua vida, mas ela nao resistiu, eu sinto muito.
Uma ótima escolha de palavras, "sente muito", como pode alguém sentir mais do que quem perdeu a própria mãe?
Gabriel continua tranquilo, sereno e sem derramar uma lágrima.
_Não conseguimos encontrar nenhum parente com que você possa ficar, mas eu vou achar um bom lar pra você tá bem, não se preocupa.
Nos dias seguintes Gabriel foi mandado para um lar adotivo temporário, mas antes pediu para passar na sua antiga casa e buscar suas coisas.
Téia não ficou muito tempo no porão, alguns minutos depois do ocorrido o seu pai desceu e a levou para tomar banho, estava ferida, sangrando e com medo.
_ As pessoas são más filha, ninguém nunca vai te aceitar como você é, ninguém além de mim.
Naquele momento ela percebeu que realmente existia um mal no mundo, mas não só fora de casa, já que ele era um dos que há possuía.
Ele havia mesmo lhe ensinado uma lição, só que a inversa do que era sua intenção, agora diferente de antes, Téia sabia que podia sair de casa, sabia que tinha uma pequena janela no porão onde com uma cadeira e um leve esforço ela poderia escapar, podia fazer o que quisesse, desde ele não soubesse, alguns dias depois Téia andava pelas ruas do bairro quando viu um grande outdoor anunciando o Circo Estrelado, um show itinerante que passaria apenas alguns dias na cidade, ela achou incrível a ideia de poder se divertir como uma criança normal, não era muito longe dalí mas não podia demorar, seu pai em breve estaria em casa.Ela se apressa e vai até a entrada.
_Venham todos, venham ver! O Circo estrelado, com estrelas para além da sua imaginação, a mulher elástico flexível e sem limitação, o homem de Aço com sua força surpreendente... Tudo, tudo no Circo Estrelado é atraente.
Téia ficou deslumbrada, existiam pessoas tão diferentes quanto ela, e essas pessoas eram aceitas, ou mais que isso, eram Estrelas.
Ao entrar no circo Téia entendeu porque as pessoas gostavam de tudo aquilo, era lindo e com tantas luzes, risadas, e pessoas com vários dons, mas o que mais lhe chamou atenção foi a Mulher Gorila, uma mulher linda que desfilava pelo palco, com cabelos cumpridos e lisos, olhos castanhos, e a pele da cor de uma bala de chocolate, ela usava um vestido longo e branco, quando derrepente, suas roupas se rasgaram e seu rosto se transformou, já não era uma mulher, era um Gorila, grande e cheio de pelos, incrível.
Téia estava fascinada com tudo aquilo, queria ficar mais, porém havia perdido a noção do tempo e precisava correr, seu pai logo estaria em casa, ela tenta sair pela porta da frente mas estava muito cheio, todos queriam ver as estrelas, ficou desesperada, não podia se atrasar, precisava correr ou acabaria no porão outra vez, então pensa em sair por de trás do palco, ninguém a veria, não é como se fosse arranjar problemas.
Estava correndo quando acabou esbarrando em alguém.
_Me desculpa.
_Opa! Calma, olha por onde anda.
A mulher se vira mas não ver ninguém, era ela, a Mulher Gorila, ainda mais linda de perto.
_ Oi, você tá aí?
_ Eu... Estou, é que não posso ser vista, preciso correr.
_ Entendo, todos estamos fugindo não é? Mas não vá com tanta pressa, pode acabar se machucando, me dá a sua mão, eu vou te mostrar a saída.
A mulher era tão gentil, parecia mesmo entendê-la, ela acompanha Téia até a porta dos fundos segurando sua mão como se a protegesse de todo mal do mundo.
_ Meu nome é Marta, qual o seu?
_ Téia
_ Olha, que legal, eu tenho uma filha chamada Talia, parecido não é?
_ Talia é um nome bonito.
_ Obrigado, o seu também é. Sabe o que ele significa?
_ O que?
_ É o nome de uma deusa, Téia, a deusa da Luz e da visão, o nome é algo importante Téia, ele defini quem a gente é, e o seu tem um grande significado, jamais deixe que tirem essa luz de você.
Téia nunca se interessou pelo próprio nome, mas se sentiu vista naquele momento, aquela mulher gentil emanava algo que ela nunca teve, amor materno.
_ Agora vá, eu preciso voltar ao trabalho. Mas pode voltar sempre que quiser, ninguém aqui vai achar estranho você ser como é.
Téia agradece e corre para casa.
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Força Zazel - Os Escolhidos
General FictionDuas pessoas interligadas por seus dons desde o nascimento. Téia e Gabriel possuem poderes que influenciam o desenrolar de suas vidas, enquanto Téia não consegue controlar a sua invisibilidade, Gabriel pode saber o que qualquer um está sentindo apen...