Espetáculo de Horror e Fogo

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A luz se esvai, o sol se põe e o clarão do dia começa a desvanecer lentamente enquanto a escuridão da noite vai lentamente ganhando o espaço dos céus, encontrando resistência somente em uma luz que emana de um pequeno vilarejo entre as colinas em alguma parte do oeste dos reinos de Tarvog.

Mas não a luz proveniente das tochas e dos lampiões espalhados pelos postes e ruas do pequeno vilarejo, e sim por causa de algo mais primitivo e caótico, o fogo.

O vilarejo se afogava em fogo, gritos e agonia. Mães correm de suas casas levando somente um amontoado de roupas ou alimento enquanto chamavam suas crianças, temendo pela segurança e bem estar dos filhos, enquanto se perdia em meio aos gritos e ao som incessante do fogo ardente crepitando na vila. Gritos esses provenientes de pobres coitados que deram de cara com criaturas humanoides que desafiam a lei natural da vida.

Criaturas com olhos negros e profundos, pele cinzenta próxima do azul, garras extremamente afiadas, uma língua comprida e de cor escura. As criaturas não usavam roupas além de trapos de pano em suas partes baixas e correntes no pescoço, tornozelos e pulsos, e mesmo assim elas pareciam não se preocupar com aquilo, elas apenas se deleitavam enquanto comiam da carne dos mortos que elas mesmo assassinavam, sugavam o tutano dos ossos de suas vitimas e bebiam do sangue que jorrava em abundancia de seus assassinatos.

Em meio a tanto terror, o espetáculo de caos era observado de uma das colinas de Bravuque, que ficavam ao sul da cidade, a vista dali era boa, as colinas estavam em terreno alto e eram o melhor lugar para se ter uma visão panorâmica dos acontecimentos do vilarejo.

Observando ali estavam dois homens, o mais velho era esguio, com roupas simples e humildes feitas de couro negro batido, sua aparência era idosa, sua cabeça estava coberta por um manto, deixando aparente somente sua grande barba e bigode brancos mas bem cuidados.

O mais novo era um jovem belo, aparentando possuir entre os 20 anos de idade, sua cabeça também era coberta por um manto negro que descia em forma de uma capa de peles de animais, por baixo do manto era possível se notar uma armadura completa feita de uma mescla entre prata-escura e couro reforçado, com altos relevos que se assemelhavam a caixa torácica de um homem. Seu rosto era jovem e bem cuidado, não possuía barba, e seus olhos azuis tremulavam junto com as luzes provenientes do vilarejo em chamas, grandes amontoados de fios de cabelos lisos e negros saiam de baixo de seu manto, junto também de uma única mexa branca em sua franja que cobria um pouco do seu olho esquerdo apesar do porte de cavaleiro, o jovem não carregava nenhuma bainha ou armas consigo.

Ambas as figuras permaneciam ali fitando as chamas e o caos na cidade em silêncio profundo, isso até é claro a figura mais velha virar um pouco o olhar para a figura mais jovem.

— "Não tema mestre, tenho certeza de que encontraremos ele!"

Em uma clara intenção de puxar conversa com a figura mais nova, o homem de idade é respondido apenas com um leve olhar de indiferença vindo dos cantos dos olhos do mais jovem, e novamente eles permaneciam em silêncio fitando o fogo.

O silêncio não foi quebrado em momento nenhum depois daquilo, nenhuma das duas figuras sequer faziam menção em tentar soltar alguma palavra, mas o jovem parecia ouvir atentamente a algo, algo que sussurrava em seu ouvido direito.

— "É realmente um fardo muito pesado que você carrega em seus ombros meu jovem..."

Uma terceira entidade estava ali presente, uma entidade que não podia ser vista, nem ouvida, exceto pelo jovem cavaleiro. Mas apesar de não poder ser vista pelos demais a entidade tinha sim uma forma, ela flutuava do lado direito do jovem cavaleiro, ela possuía longos cabelos castanhos escuros que ignoravam a gravidade e o fato de que ele estava flutuando quase que de ponta cabeça, seu corpo estava totalmente amarrado em ataduras que lembravam uma camisa de força, selando seus braços, suas pernas estavam presas por um manto de couro envolvido com correntes negras, os olhos da entidade não podiam ser vistos, pois estavam tapados com uma placa de metal com espinhos, sua pele mudava de cor a cada segundo que passava, indo de tons claros a tons escuros e voltando a tons claros e seguindo novamente o ciclo. A entidade possuía asas como um anjo, mas suas asas ja estavam surradas e machucadas, sem penas e com aparência destruída, elas não aparentavam ter utilidade, pois nem se mexiam, ao contrário do corpo da entidade, ele nunca estava ereto, seu corpo estava sempre se contorcendo, como se tentasse encontrar uma posição mais confortável mas falhasse em todas as tentativas.

— "Um mundo tão injusto como esse, onde existe amor pelo ódio e ódio pelo amor, onde a união é criada para que exista uma minoria. - Conversava a entidade com o jovem cavaleiro com um tom calmo e sereno, mas infundindo sempre um tom de desprezo e desgosto. - Eu vi o amor, que é algo tão belo, gerar o ódio. Vi o ódio, que é algo tão primitivo, gerar a guerra. Vi a guerra, que é algo tão brutal, gerar a fome. Eu vi a fome, que é algo tão cruel, gerar a morte."

A entidade fica alguns instantes em silêncio.

— "E então eu vi a morte."

A entidade se contorce para o outro lado do jovem cavaleiro e continua seu discurso.

— "E você sabe o que eu vi na morte Syrus?"

O jovem cavaleiro, Syrus, mantinha seu olhar no vilarejo, mas seu coração nas palavras da entidade, e diante da indagação da entidade, seu olhar se torna tão leve o quanto de uma viúva recente. Ele deu sua resposta sem dar palavras, e contente, a entidade continuou.

— "Eu vi a morte, e ela era silenciosa. Ela não levava a mais sofrimento, ela era tão benevolente e generosa quanto água para um moribundo com sede. Ela não gerava insegurança, ela não gerava medo, ela não gerava amor, ela não gerava ódio... Ela gerava paz."

Syrus fecha seu punho e leva até seu rosto, retirando uma pequena lagrima que caia do seu olho esquerdo em seu rosto sem expressão.

— "Meu pequeno leão, eu te mostrei o que o futuro aguarda, te dei uma oportunidade. Você a agarrou, olhe para o horizonte, não retire os olhos nem sequer por um segundo do que você conquistou. As mortes que você causou, as casas que você incendiou, as famílias que você arruinou e as esperanças que você ceifou. Não existe mais volta, esse é o sacrificio a ser pago, o seu sangue, a sua sanidade e o seu sonho. Tudo deve ser espiado através de ti para que não exista mais o pecado gerado pela vida."

Syrus abre sua boca quebrando o silêncio entre ele e o senhor de idade.

— "Vamos Khafir, já não devem ter mais vivos no vilarejo."

O velho tem sua atenção trocada subitamente para as palavras de Syrus.

— "Ah? Cla-claro mestre!"

Khafir e Syrus descem da colina em direção ao vilarejo, enquanto caminham, Syrus nota os vários olhares que recebera de Khafir.

— "Por que me olha com tanto espanto Khafir?"

— "Na-não é nada meu senhor."

— "Algo te incomoda, da para sentir de longe."

— "Me perdoe mestre, mas é impossível não notar. O senhor estava conversando com Deus?"

Syrus não se sente abalado pela pergunta do velho, pelo contrário, ele se orgulha da pergunta vinda de seu vassalo.

— "O que ele lhe disse mestre?" — Insiste Khafir.

Syrus coloca a mão no ombro do velho Khafir, mostrando um pequeno sorriso de canto de boca tentando acalmar seu seguidor.

— "Ele disse que estamos no caminho Khafir, e que o que fizemos hoje, o seu sacrifício e o meu sacrifício, trarão a queda do caos." 

E com a luz se esvanecendo em meio a noite, as trevas vão lentamente vai voltando a ter a posse da sua tão amada escuridão, dando espaço para que as brilhos das estrelas do céu escuro não tivesse mais contra quem competir sob a dominância de luzes.

Fall Of ChaosOnde histórias criam vida. Descubra agora