SAULO
Aos onze, descobri que todo maldito herói esconde um vilão dento de si. A pintada de escuridão é inevitável e se torna indispensável com o passar dos anos, ela nos deixa aptos para suportar toda a dor e decepção que a vida nos trará. Então, deixei pra lá qualquer tipo de ideal e fantasia que um menino poderia carregar na mente e fiz o que achava que devia ser feito. Sem culpa ou ressentimento, eu tentava viver sem envolver os outros nas minhas merdas, embora ter uma família feliz seja uma boa camuflagem é muito aborrecimento. A raiva estava batendo constantemente contra meu peito, clamando por libertação e aprendi a sufocar o desejo por destruição.
Segui o caminho militar por um ano contra a vontade da minha mãe e encontrei um lar no exército, alguns dos caras eram como eu, eles me entendiam sem que eu precisasse realmente falar sobre meus sentimentos. Foi bom por um tempo, até eu descobrir o que acontecia bem debaixo do meu nariz e ferrar com tudo ao ponto de ser expulso, dois meses atrás, isso não importa agora, não estou arrependido e faria tudo novamente se fosse preciso. Escorrego a mão pelo comprimento curto do meu cabelo, um sinal que já estou ficando impaciente e preciso relaxar.
— Ei, coma alguma coisa, soldadinho. — encaro o rosto enrugado que carrega um olhar arrogante e sagaz demais pra alguém tão velha, então sorrio e agarro o garfo.
Ela ainda vai enterrar todos nós.
—Claro, vó.—digo, tentando soar dócil e contornar os olhares em minha direção. Ela bufa insatisfeita. Acho que ela esperava um pouco do show bizarro que costumava presenciar quando alguém entrava no meu caminho. Lamento vovó, preciso parecer normal, mas essa espera também está me matando.
A fedelha não desce daquele quarto e preciso dela fora para cumprir minha missão e essa casa está me sufocando, não tá dando para disfarçar quando meus olhos viajam até os dela o tempo todo. Não posso impedir que meus punhos se fechem quando escuto a vozes alegres deles.Hipócritas. Um prato de omeletes é posto na minha frente e levanto meu olhar para encarar o sorriso tímido, ainda assim feliz da minha mãe, escaneio o rosto feminino e pálido para decorar os traços que estavam se perdendo em minha memória, as olheiras e tristeza evidentes em sua face não descartaram a sua beleza natural, minha mãe está apenas um ano dos quarenta e poderia com alguma ajuda estética se passar pela irmã do seu filho de dezenove anos.
De uma maneira torta, isso me alivia, imaginar que pode existir alguém disposto a fazê-la feliz novamente tira um pouco do peso que carrego nos ombros. Apesar dela nunca ter presenciado o que eu fazia na calada da noite ou a qualquer momento que eu quisesse, sei que, no fundo, ela sabe que não eram coisas boas, que seu filho não é totalmente bom, eu sei que ela não acreditou quando eu disse que tinha deixado o exército por livre espontânea vontade, mas ela não questionou e nem falou mais no assunto, embora tenha deixado claro que farei do seu jeito agora. Sorrio pra ela, tentando de alguma forma mostrar que eu me importo. E eu me importo com ela, verdadeiramente.
—Obrigado.—sussurro, acariciando o dorso de sua mão esquerda que ainda pousa na mesa, perto de onde está o prato de refeição e ela assente, incerta se deve me acariciar de volta. Alguém a chama na sala e ela deixa a cozinha, mas não antes de me direcionar um olhar esperançoso.Eu não quero decepcioná-la, por favor, não acredite em mim.7Estamos apenas fazendo uma visita aos meus tios, algum momento em família depois de toda a desgraça que aconteceu com suas filhas e deixou toda a família devastada, apenas cinco dias para retratar o que não pode ser refeito.
Começo a comer o omelete apesar de não ter fome, preciso de uma distração até que minha única prima viva resolva tirar a bunda da cama e descer até aqui.Viva. Ela não parecia muito afim de viver ontem, correndo como uma louca durante uma tempestade em uma estrada deserta. Bufo. Inconsequente da porra!Retiro meu moletom por cima da cabeça e ponho sobre a cadeira que me encontro sentado, estava frio durante a madruga e pela manhã cedo, mas agora sinto como se meus ossos estivessem pegando fogo e minha pele fosse derreter a qualquer momento, a blusa branca de algodão que eu vestia por baixo gruda ao meu corpo. Levanto da mesa e sigo direto para pia, lavo meu prato e o coloco junto da pilha de pratos limpos que se encontra perto da balcão e me preparo para enxugá-los e depois guardar em seus devidos lugares, mas sou interceptado por braços finos e bronzeados.
—Deixa que eu faço isso. — A postura rígida e insegura dela me faz demorar alguns segundos para concordar, sinto que minha presença nessa casa a deixa desconfortável tanto quanto eu, mas saber disso agora também me deixa satisfeito.
— Tudo bem, tia. Vou deixar isso com você. —sorrio mostrando todos meus dentes pra ela, estou contente agora que sei que ela ainda se lembra. Boa garota.
— Vá deitar um pouco. Deve estar cansado da viagem. — Ela fala, encarando o pano de prato em suas mãos. Fazendo uma pausa antes de lembrar que precisa olhar para o meu rosto e fingir que sou bem-vindo em sua casa. Ela diz que minha mãe e vó foram para seus quartos descansar minutos atrás e checo a cozinha, reparando que não tem ninguém além de nós dois aqui.
— Liz não vai descer? — cedo demais, eu penso quando os olhos dela me estudam com preocupação. — Ela não ficou doente por pegar toda aquela chuva, ficou?
— tento parecer o mais preocupado possível, tocando seu ombro para causar um efeito mais dramático e desviar seus pensamentos do passado e de quem eu realmente sou. Funciona, porque ela relaxa e sorri.— Ela está um pouco cansada, mas logo vai descer. Obrigado por trazê-la para casa, Saulo.
— Família cuida da família. — Digo, com um sorriso que ninguém poderia dizer que era falso. Então eu falo que também preciso descansar, mas ao invés de ir para o quarto de hóspedes, caminho rumo a minha caminhonete para acender um cigarro.
Eu preciso me manter com a cabeça fria e mãos ocupadas antes de partir para as acusações.
Estou dez passos do meu destino quando algo queima em minhas costas, a sensação de ser vigiado me toma e começo a vasculhar por todos os lados, o treinamento militar me ensinou a sempre ficar na ativa e esperar o pior, olho novamente para esquerda quando uma árvore com um balanço velho ruge quando seus galhos e folhas são balançados pelo vento forte, estreito meus olhos reconhecendo agora a merda da árvore e sigo reto com a visão, encontrando a imagem dela se esgueirando pela janela e me fitando curiosa.Maldita fedelha!O sorriso presunçoso se instala em meu rosto, a adrenalina percorrendo em minhas veias quando nossos olhares se encontram e os dela mudam de intrigados para constrangidos, meu sorriso se alarga.Ela quer brincar mesmo disso, fazer igual quando éramos crianças?Tudo bem por mim.
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ARVORE DESPIDA [2024]
Novela JuvenilARVORE DESPIDA - segredos de família. [2024] Liz perdeu sua irmã em um acidente de carro e precisará lidar com uma nova realidade, uma que possui alguém do passado que ela pensou ter imaginado, segredos, desejos proibidos e o ex da sua irmã que el...