Capítulo 1

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• Maiara •
Dias atuais

O dia não poderia ter começado da pior maneira. Primeiro, aquela cobrança de hipoteca atrasada e a intimação – pagamos ou iremos perder a casa em um mês. É a casa onde nasci, onde construímos nossa família, mas as palavras ali não deixam dúvidas que se não quitarmos a dívida da hipoteca com o banco, dívida essa a qual eu acabo de ter conhecimento, perderemos tudo. E agora estou aqui, diante do meu chefe, que com vagas palavras me notifica que perdi meu emprego.

Com certeza, não poderia ficar pior o meu dia. Respiro fundo, sentindo toda a minha frustração indo direto para meus dutos lacrimais, e justo hoje quase perdi o horário. Se soubesse que isso aconteceria, não teria me dado o trabalho de sair de casa.

Não chore, não chore, não chore!, imploro internamente, porque tenho o humilhante hábito de chorar quando estou com raiva, frustrada ou coagida. Só que não posso chorar aqui, na frente do baixinho gorducho com cara de abóbora. Seria humilhante demais.

Mais uma vez inspiro profundamente, assimilado e imaginado o que direi ao meu pai quando chegar à minha casa. Já é ruim o bastante ter que vê-lo definhando a cada dia que passa por causa da sua doença e reclamando que é um inútil, e agora terei que dizer a ele que estou sem emprego.

Trabalho, ou melhor, trabalhava na pequena revista há um ano, desde que me formei em jornalismo na Universidade de São Paulo. Na época, minha professora até havia me oferecido um estágio em uma renomada editora em Nova Iorque, mas tive que recusar a proposta para cuidar do meu pai, que estava com sérios problemas cardíacos e teve que deixar o emprego como empreiteiro de obras em uma pequena empresa.

Meu pai insistiu para que eu fosse em busca dos meus sonhos, mas que espécie de filha seria eu se abandonasse o pai doente? Ir para Nova Iorque naquela época não era uma opção. Meu pai precisava estar constantemente no hospital para exames de rotinas e cirurgias, cirurgias essas que nosso plano de saúde não cobria. Tivemos sorte no início, pois a empresa na qual meu pai passou anos de sua vida se dedicando ao trabalho arcou com alguns dos seus gastos, inclusive despesas com o hospital e medicamentos, mas isso não durou muito e tivemos que começar a nos virar com o pouco que tínhamos. Então foi quase um alívio divino quando consegui preencher a vaga na revista, como colunista de culinária. Não era o emprego dos meus sonhos, mas me servia muito, e agora eu o perdi.

Meu chefe continua com seus pretextos idiotas de ter que fazer contenção de gastos. Enquanto eu me forço a não pensar que além do emprego, perderemos também nossa casa. Por sorte tenho um pouco de dinheiro que estava juntando para talvez comprar um carro melhor, já que a velha picape parece estar dando seus últimos suspiros. Mas agora terei que dar adeus ao meu tão sonhado carro novo e usar minhas economias para pagar um aluguel e comprar os medicamentos do papai.

XX: Isso é pelo tempo que você trabalhou aqui — declara friamente, estendendo-me um cheque após finalizar as suas desculpas idiotas.

Pego-o de sua mão, e quando meus olhos caem sobre a quantia, que chega a ser aproximadamente um por cento a mais do que recebo por mês, sinto a tristeza dar lugar à raiva, que passeia por minhas veias como chamas, aquecendo meu sangue.

Maiara: Está falando sério? — Ergo meus olhos para ele, enquanto faço a pergunta. Só pode estar de brincadeira.

XX: Infelizmente, é o que posso te dar, visto que sua coluna nunca foi um grande sucesso — desdenha, enrugando a testa.

Aperto os lábios, tentando não colocar para fora todos os piores xingamentos que tenho conhecimento. Sei que discutir com ele é perda de tempo, e não tenho mais cabeça para continuar com essa conversa.

Aperto o cheque com força, amassando-o no processo. A vontade que tenho é de jogar o maldito papel em sua cara ou o mandar enfiar em algum lugar, mas, ao invés de descarregar minha ira, apenas levanto-me e, usando o resto de dignidade que me resta, caminho até a saída, sem dirigir meu olhar na sua direção, batendo a porta com força quando saio de sua sala.

Arrumo minhas coisas em tempo recorde, já que não tenho muitas sobre minha pequena mesa. Tudo coube em uma pequena caixa de sapato – um porta-retratos, com uma foto minha e do meu pai na minha formatura, minha agenda, grampeador e um livro que estava lendo. Me despeço dos meus colegas, sem muito drama, afinal, não tinha tantos aqui na revista. Mas sentirei falta do Eric e da Josi, eles eram meus companheiros nesse tédio de revista. Espero poder voltar a vê-los em breve.

Caminho para fora do prédio, sentindo um aperto no peito. Tudo parece estar desmoronando diante dos meus olhos e não sei absolutamente nada o que fazer a respeito disso.

Não sei como será de agora em diante, mas uma coisa é certa, preciso de um emprego o mais rápido possível, senão, não sei o que será de mim e do meu pai.

Enquanto dirijo pela rodovia, sinto as lágrimas embaçarem minha visão. Raiva, medo, frustração são apenas algumas coisas que estou sentindo. Perguntas circulam em minha cabeça, atordoando-me ainda mais. O que farei agora?

Como vou quitar a dívida do meu pai com o banco, se mal sei se meu dinheiro será suficiente para chegar até o final do mês.

O que será de mim e do meu pai se eu não encontrar uma saída para nossos problemas?

Um soluço escapa da minha garganta e já não consigo controlar as lágrimas. Sei que este não é o melhor momento para ter uma crise de choro, mas não consigo me conter.

Puxo o ar, tentando acalmar minha respiração e, por fim, minhas lágrimas. A chuva cai incessantemente e é meio difícil prestar atenção ao trânsito, quando mal consigo enxergar por trás das lágrimas. Estou tão confusa e perdida que por um momento fecho os olhos e respiro lentamente, e quando dou por mim, minha picape está entrando na faixa contrária. Vejo apenas o farol alto em minha direção, então viro o volante rapidamente, perdendo o controle. Puxo o freio de mão com tudo, mas o que acontece a seguir não é o que esperava.

Tudo parece em câmera lenta. Sinto meu corpo sendo jogado de um lado para o outro, mas por sorte estou com o cinto de segurança, que me protege de ser arremessada para fora do para-brisa. Enquanto o veículo capota várias e várias vezes, antes de parar abruptamente, tudo o que consigo recordar antes de apagar é da dor em meu corpo, o gosto do sangue quente que banha minha face e de um par de olhos castanhos me fitando intensamente, do lado da minha janela.

Com certeza é um anjo.

Não se apaixone por mimOnde histórias criam vida. Descubra agora