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  A madrasta Hortência estava em pé diante da porta, com os braços cruzados e uma expressão de triunfo repousando jocosamente sobre seu rosto cheio de harmonização facial. Ela assistia com prazer a cena de seus funcionários carregando a albina para fora do quarto.

  Antonella se debatia contra os homens fortes, gastando o resto de energia que ela ainda tinha. A força dos homens trajados de preto era infinitamente maior do que a dela, e mesmo Drummond tentando forçar seu peso para baixo na intenção de fincar os pés no chão, eles as seguravam acima da linha de suas canelas.

  ㅡ Eu disse que te encontraria onde quer que você fosse, você não consegue viver longe de mim e do seu pai ㅡ a mulher que possuía cabelos com luzes disse, enquanto seus funcionários carregavam Antonella pelo corredor.

  ㅡ Menina! Menina! ㅡ ela ouvia de longe, o som abafado.

  Drummond arquejou, sem fôlego sobre a cama. Quando finalmente abriu os olhos, os cabelos suados grudavam ao redor do rosto, e as três meninas de feições asiáticas acima de si, a encaravam com espanto.

  Estava viva, e exatamente no mesmo lugar onde desabara no sono na noite anterior: com as pernas para fora da cama e o casaco de pele ainda em si. Sentia frio, e não sabia distinguir se os tremores eram por causa da baixa temperatura ou por causa da fraqueza.

  ㅡ Doce... ㅡ Antonella rolou da cama, engatinhando rumo à mala que tinha deixado ao lado da porta.

  ㅡ Está atrasada ㅡ uma garota de cabelos negros muito bem arrumados alertou.

  ㅡ Eu preciso... ㅡ a voz arrastada implorava, enquanto tentava desesperadamente abrir o zíper. ㅡ de doce.

  As três meninas se entreolharam, se perguntando o que realmente estava acontecendo ali. As mãos da albina tremiam tanto que o pequeno zíper escapava de seus dedos, e o desespero tomava conta de seu coração conforme ela ficava cada vez mais fraca.

  Uma garota que possuía seus cabelos tingidos de ruivo e uma moça com cabelos tingidos de loiro, ajudaram Drummond a se levantar e sentar-se na cama. Enquanto a garota de cabelos negros abriu sua mala bagunçada e tirou de lá uma barra de chocolate, abrindo-a e entregando nas mãos da garota.

  Antonella devorou o chocolate com gosto, e quando terminou de comer metade da barra, um sinal soou no corredor:

  ㅡ Todos os alunos de medicina no auditório. Repito. Todos os alunos de medicina no auditório.

  Quando o pico de glicemia passou, a consciência voltou para a menina albina, que olhou para as garotas à sua volta, todas assustadas com o que tinha acabado de acontecer:

  ㅡ O que foi dito? ㅡ indagou, em inglês.

  ㅡ Todos os alunos de medicina no auditório ㅡ a loira disse, de braços cruzados. ㅡ Você faz medicina?

  ㅡ Sim ㅡ respondeu, ainda fraca. ㅡ Onde é o auditório?

  ㅡ Eu sou estudante de medicina ㅡ disse a garota de cabelos negros, ajuntando seus materiais sobre a escrivaninha.

  Antonella reparou um pouco melhor no quarto: quatro escrivaninhas retangulares no centro, e uma delas vazia. Duas beliches encostadas numa parede, na parede adjacente, uma enorme janela e uma sacada com uma mesinha de ferro e quatro cadeiras. Ao lado da janela, uma estante transbordando livros, e ao lado do banheiro um guarda-roupa de quatro portas.

  ㅡ Me leve até lá, por favor.

  ㅡ Mas você está um caco ㅡ a garota a encarou.

  ㅡ Eu sei ㅡ Antonella revirava a mala em busca de seus materiais de estudo. ㅡ Mas não posso me dar ao luxo de me arrumar e chegar atrasada no primeiro dia de aula.

  A garota de cabelos brancos que ainda usava o mesmo casaco de cabelo de quando saiu do Brasil, se levantou com os livros debaixo de braço e teve a decência de passar os dedos nos cabelos na intenção de desembaraçá-los.

  Andando pela parte aberta do campus após sair do prédio dos dormitórios, a neve derretia com os comedidos raios de Sol que raramente saíam de trás das nuvens no inverno. Antonella teve coragem de perguntar:

  ㅡ Qual o seu nome?

  ㅡ Kim Ji Soo. E o seu? ㅡ ela era linda. Os módicos raios de Sol realçavam sua beleza ao oscilar nos cabelos negros que brilhavam.

  ㅡ Antonella Drummond.

  ㅡ É um nome bonito, nomes ocidentais são lindos ㅡ ambas finalmente adentraram o enorme auditório da faculdade. ㅡ A diretora realmente havia falado sobre uma intercambista ocidental, de onde você é?

  ㅡ Brasil ㅡ a loira tomou um assento numa fileira mais afastada do palco.

  O queixo de Ji Soo caiu. Brasileiros eram ousados, peculiares, o verdadeiro terror dos coreanos.

  ㅡ Ah, o grande país do futebol.

  O silêncio se instaurou no auditório quando os saltos baixos da diretora ecoaram sobre o assoalho de madeira do palco.

  ㅡ "Só se vive uma vez", essa frase é a coisa mais verdadeira que eu já ouvi em toda a minha extensa existência. Mas vocês, caros estudantes de medicina, caros futuros heróis da nação, estão levando essa frase a sério demais.

  Diante da introdução dramática da Sra. Sun Gi, Antonella já sabia do que aquela reunião se tratava: sobre a ligação que ela tinha feito enquanto subia as escadas na noite anterior.

  ㅡ A vida realmente é uma só. Mas vocês não estão somente desperdiçando tempo com suas atitudes medíocres e inconsequentes, mas talento e todo o esforço que vocês fizeram para passar no vestibular. Whisky? ㅡ a Sra. Sun Gi falou com um tom de escárnio e deboche, como se whisky fosse a bebida de mais baixo escalão possível.

  Drummond sentiu um par de olhos queimar sobre si na diagonal esquerda, e quando buscou por quem a encarava tão incisivamente que podia ser sentido, encontrou: o garoto da noite anterior a olhando como se realmente fosse cumprir a promessa de mandar a cabeça da loira para sua família.

  Ela então entendeu que ele tinha sido pego através de sua denúncia, porque nem mesmo ela havia visto que o que ele mantinha sob a jaqueta de couro era uma garrafa de whisky.

  ㅡ Se existem regras, elas são feitas para ser cumpridas. O dormitório das meninas é para as meninas, e se estão tão desesperados por bebida, não desperdicem seu tempo estudando anatomia e estequiometria, virem pedintes. 

  Enquanto a diretora falava, Antonella continuava encarando o garoto acastanhado, sem piscar. Mesmo que ela tivesse medo; mesmo que ela fosse uma garota que sofrera a vida inteira e ao invés de se tornar má, continuou boa e gentil; mesmo que ela não fosse uma femme fatale; mesmo que ela não tivesse força o suficiente para lutar com seguranças nem em sonho.

  E aquele olhar de soslaio era mais fatal do que qualquer maldade, e mais forte que qualquer força física. Era o olhar que prometia que a última coisa que aquele garoto veria seria seu olhar de triunfo, mesmo que ela não fosse capaz de cumprir a promessa.


Apartamento 21 - Lee KnowOnde histórias criam vida. Descubra agora