| S E R K A N |
Imagine um mundo onde tudo saía exatamente como imaginamos. As coisas dariam certo e eu não estaria onde estou agora: congelando em um banco de hospital depois de ter repetido a mesma história por mais de três vezes para os policiais.
Felizmente, Kiraz não estava aqui para ver o próprio pai sendo interrogado.
Depois que Melek a levou, as horas pareceram se arrastar, passaram tão lentamente que poderiam facilmente ter se passado três dias dentro das duas últimas horas. Se não tivesse consciência de que roer unhas é um péssimo hábito, meus dedos já estariam no sabugo, mas a ansiedade não é tão simples de ocultar. Minhas pernas que o digam, balançando há horas nesse mesmo lugar.
Para cima e para baixo, para baixo e para cima. Repetidas vezes, sem pausas.
Bato o calcanhar no chão uma última vez antes de avistar a Dra. Cooper caminhar na minha direção. Me levanto o mais rápido que consigo e como em todas as outras vezes a encontro no meio do caminho.
— Senhor, Bolat. — A Dra. Cooper remove uma camada espessa de cabelos escuros da testa enquanto me dá um sorriso gentil. Gentil demais, não sei se gosto disso. Pessoas costumam sorrir dessa maneira quando estão prestes a lhe transmitir más notícias, não preciso de mais notícias ruins hoje. — Estava mesmo me perguntando se ainda estaria aqui.
— Eu disse que esperaria.
— Eu sei, mas as pessoas nem sempre cumprem o que prometem.
Dou um passo para o lado, para sair da área de circulação. — Não sou uma dessas pessoas.
Ela acena com a cabeça, seu rosto está mais cansado do que a primeira vez que a vi ontem a noite.
— Estou prestes a sair do meu plantão, contudo preciso cumprir minha palavra também. — Arrancando um adesivo do bolso interno ela o cola no meu peito com uma sessão de tapinhas. — A polícia já conversou com a garota, então se quiser pode vê-la.
— Ela está acordada?
Ela dá um sorrisinho bobo e me encara. — Acordada, falante e ainda confusa. Mas bem. — faz sinal para que a siga. — As enfermeiras estão encantadas com ela.
— Mesmo?! E por quê?
Me encara diretamente quando passamos pelas portas e seguimos pelos corredores. A Dra. Cooper é bem mais baixa do que eu – o que não é difícil de encontrar –, tem a pele cor de avelã e parece muito mais jovem do que acredito que realmente seja. — Estamos em um hospital, senhor Bolat. Gentileza, infelizmente, não é algo corriqueiro por aqui.
— Entendo.
Afirmo, paramos ao chegarmos na enfermaria. Leitos e mais leitos divididos apenas por cortinas separam os enfermos. Avisto uma pequena aglomeração de pessoas nos fundos da sala e no meio uma mulher de vermelho parece entreter a pequena multidão de quatro ou cinco pessoas.
— O que ela está fazendo?
A Dra. toca meu braço gentilmente. — Mágica. Esta deve ser a quarta sessão. É uma mulher bem estranha, desde que acordou não parou em sua cama por um segundo. — Indica para que eu adentre a sala, mas não sei se quero atrapalhar o que vejo. — Ajudou as enfermeiras com os acamados, ofereceu água para os que conseguiam beber e durante a madrugada foi encontrada na maternidade.
— Ela fez tudo isso nas últimas horas?
— Sim, eu lhe disse, uma mulher muito estranha e gentil, devo acrescentar. — Parando no meio da sala ela me interroga com o olhar, não dei um passo na direção deles desde que a avistei. É muito difícil para mim pensar que poderia ter acabado com a sua vida. Respirando fundo sigo a doutora até eles. — Senhorita Christmas…
Sinto um vinco profundo se formar entre minhas sobrancelhas e me aproximo o máximo que posso para cochichar com a Dra. Cooper.
— Desculpe, do que a chamou?
Ela se inclina para mim e utiliza o mesmo tom de voz ao responder. — Christmas! É como ela disse se chamar. Eda Christmas.
— Christmas, como o Natal?
Ela dá uma risadinha e agita os ombros. — Isso, eu lhe disse, ela está confusa. — Se volta novamente para o pequeno grupo, deixando-me pensativo. É um nome muito estranho para uma pessoa. — Senhorita Christmas!
Volta a chamar a Dra. Cooper e um vulto vermelho salta do meio da pequena multidão em nossa direção.
No curto percurso que ela faz até nos alcançar parece que meus pés são pregados no chão, e minha respiração cessa totalmente. Todo meu ar é retido nos pulmões, enquanto a garota caminha alegremente até nós.
— Me desculpe, não estou acostumada com o senhorita.
Diz sorrindo e seus olhos amendoados saltam da Dra. Para mim. Sua expressão parece congelar, e seu rosto pálido ganha um tom vívido de vermelho.
— Entendo… bom, deixe-me apresentá-los. Este é o senhor Bolat.
Suas sobrancelhas finas e bem desenhadas se erguem por um curto segundo, como se ela avaliasse meu nome antes de dar um passo em minha direção e me estender a mão. — Eda Christmas, é um prazer finalmente conhecê-lo…
— Finalmente?! — ela pisca, tem cílios curvados e escuros que adornam seus olhos com maestria.
— Oh, sim… a Dra. Cooper disse que estava esperando para me ver.
Ah, suspiro surpreso por ela parecer tão, tão, tão bem. Uma pessoa recém atropelada não deveria parecer tão bem. Mas que bom que ela está.
— Claro, Serkan… Bolat. — Um sorrisinho suspeito soa dela, agarro sua mão na minha finalmente aceitando o gesto. A garota me olha como se pudesse pentear minha alma, seus olhos se fixam nos meus por instantes inteiros enquanto um estranho formigamento, como correntes elétricas são transferidas entre as palmas.
Não tenho certeza de quanto tempo segurei a mão dela na minha até que ela interrompesse o toque com um puxão quase selvagem, como se tivesse acabado de levar um choque, mas pareceu bem mais que meros segundos passando em câmera lenta. Muito esquisito.
Recuperando-me do momento estranho que acabo de vivenciar, enfio as mãos nos bolsos do casaco e dou um passo para trás.
— Peço desculpas por ter que estar aqui. — As mechas castanhas ondulam pela sua cabeça e deslizam pelo ombro quando ela pende um pouco para o lado. Com o olhar de confusão estampado no rosto. — Fui eu quem atropelou você ontem a noite.
Sua boca se abre, muito surpresa ela cobre a mesma com a mão. — Eu fui atropelada?!
Olho para a Dra. Cooper que sorri nervosa para mim.
— Eu lhe disse, você não a atropelou. Ela desmaiou com o susto, mas está bem.
— Ufa!
Exclamou ela sorrindo para mim. A Dra. Cooper agarra em meu braço me puxando para fora novamente. Eda Christmas fica parada me encarando, ela sequer pisca.
É um pouco assustador para falar a verdade.
— Eu disse, ela está confusa. — Ela suspira e acena para a garota que acena de volta bastante animada. — Não tem documentos, e também não sabe de onde veio. Tudo o que nos disse é que tem um trabalho a fazer e que deveria ir.
— Ir, mas para onde? Talvez eu possa levá-la.
A Dra. balança a cabeça visivelmente cansada. — Acho que não, ela também não sabe dizer. A polícia não encontrou registros de nenhuma Eda Christmas no Estado, também não existe ninguém com as características dela no banco de desaparecidos… não sabemos se tem alguém procurando por ela.
Minha vez de balançar a cabeça, a encaro mais uma vez, e mais uma vez ela sorri. Um sorriso completo e brilhante. Um sorriso estranhamente familiar que me provoca um arrepio por toda a espinha.
Desvio os olhos dela, mesmo com certa dificuldade. — E o que acontece com ela agora?
— Bem, ela não pode ficar aqui. Está fisicamente bem e nessa época do ano é muito difícil conseguir leitos. Temos muitos acidentes. — Eu mesmo fui testemunha desse fato ontem durante toda a madrugada. — Ela terá alta ainda hoje.
— Mas se está confusa não pode deixá-la ir embora. Poderia acontecer algo pior.
Concordando a Dra. Cooper se vira para o corredor provavelmente para manter a conversa entre nós dois, me viro de costas para a garota e para a sala.
— Sei disso, acionei a assistência social do Hospital. Eles irão assinar a alta e a garota passa a ser responsabilidade do Estado.
Cruzo os braços. — O que isso quer dizer, exatamente?
— Quer dizer que ela irá para um abrigo temporariamente até que consiga se lembrar do nome verdadeiro ou a família apareça.
— Isso pode levar tempo…
Concluo, olhando por cima do ombro. Não está mais parada no meio da sala, agora ajuda uma senhora a voltar para sua cama. Não tem nenhum sinal de incômodo em seu rosto, como alguém pode sorrir tanto?
Sua mandíbula deve doer no fim do dia.
— Certamente, mas não há o que fazer. Não posso mantê-la aqui.
Me sinto mal, um aperto toma conta do meu peito. Não fosse minha falta de atenção ela provavelmente teria chegado ao seu destino. Provavelmente estaria em casa, com sua família e seus amigos. Por que tenho essa sensação persistente de sempre estar arrancando alguém de seu ninho?
— Não posso deixá-la ir para um abrigo por minha causa.
Esses lugares não são o melhor, a maior parte deles sequer é confortável e geralmente é frequentado por todos os tipos de pessoas. Não posso deixar que ela vá parar em um lugar assim. Ela me parece tão indefesa e inocente. O que não fariam com ela em um lugar como este?
Estaria sujeita a todo tipo de perigo e mais uma vez por minha causa.
— Não há muito que possa fazer, senhor Bolat.
— Mas deve existir algum modo de ajudá-la até que sua família apareça… ou que ela se lembre.
— Bem, se o senhor fosse cadastrado como lar voluntário…
— Lar voluntário?
— Sim, tudo o que precisa fazer é preencher alguns formulários e se estiver de acordo, assinará a alta e ela poderá ir com você. Sob sua responsabilidade, é claro.
Pensa Serkan, pensa!
Não é uma boa ideia levar uma completa estranha para casa, a casa da sua filha. Não é nada sensato!
A olho mais uma vez, debruçada sobre um homem o ajudando a arrumar os travesseiros atrás das costas.
Deus! O que faço agora?
— Me parece inofensiva. Um pouco atrapalhada, mas é visível que tem um bom coração. — Diz a Dra. Cooper para mim. — É muito difícil fingir bondade…
Os olhos azuis celestes dela me perscrutam com atenção. Poderia jurar que ontem a noite seus olhos eram castanhos. Enfim, provavelmente estava confuso e cansado.
— E então? O que vai fazer, jovem?
O que eu irei fazer?
☃️🎄🦌🔔🎁🌟
Assino os últimos papéis na recepção, nada mais justo que a conta fique também por minha conta. Enviei uma mensagem para Melek enquanto espero pela minha nova hóspede temporária e pedi a ela que levasse Kiraz para o rancho.
Não sei se estou fazendo a coisa certa ao levar uma estranha para casa, mas meu coração diz que não é a coisa errada. E francamente? Faz um bom tempo que não o escuto. Faz tempo que eu sequer o escuto bater.
— Aqui está.
Arrasto a prancheta no balcão, a recepcionista me agradece com um sorriso rápido e leva os papéis com um aviso de retorno rápido.
Poucos minutos depois ela retorna, a garota que, francamente se parece bem mais com uma mulher, segura as mãos na frente do corpo, seu rosto continua vermelho como um pimentão na região das bochechas.
Retiro meu casaco e quando ela se aproxima jogo a peça sobre os ombros dela. Espero que isso a mantenha aquecida até que estejamos em casa. Bem, na minha casa.
— Obrigada! É muito gentil da sua parte.
Abro a boca, mas nada sai. De onde conheço esses olhos? — O quê?
Ela pergunta me encarando com muita curiosidade. — Nada, é que… bom, gentil não é algo que usam para me descrever.
Ela dá de ombros suavemente, tem um sorriso meigo e espontâneo em seus lábios.
— É exatamente como se parece para mim.
Os olhos dela parecem mergulhar nos meus por minutos até que escuto meu nome. Me viro para a recepcionista. — O seu recibo, senhor.
— Obrigado. — guardo o papel e antes de ir peço algo a mais para ela. — Poderia por favor entregar isso a Dra. Cooper? — Arrasto um cartão de visitas pelo balcão. A mulher o agarra e o analisa.
— Desculpa. Acho que não entendi.
— Dra. Cooper. Ela foi muito gentil conosco, gostaria de retribuir de alguma forma.
A garota de vermelho ao meu lado coça a pontinha do nariz fazendo um barulhinho esganiçado com a garganta.
— Desculpe, senhor. Você certamente se confundiu, não tem nenhuma Dra. Cooper aqui.☃️🎄🦌🔔🎁🌟
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Um anjo chamado Natal
FanfictionÁs vezes nosso coração se parte em tantos pequenos pedaços que reconstrui-lo se torna cansativo ao ponto que o melhor pode ser deixar para lá. Isolar-se e deixar que o mundo gire sem que você participe dele. Mas, por mais doloroso que pareça resist...