Capítulo 17

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Snape calçou as botas enquanto se sentava na beira da cama do hospital. Os botões intrincados ajudaram-no a concentrar-se no aqui e agora, dando-lhe a oportunidade de ignorar a miríade de mudanças que estava experimentando. Não importa como seu corpo se transformasse, sempre existiriam seus sapatos e suas vestes. Sua armadura.

Ele sentiu Dumbledore no momento em que entrou na enfermaria e ouviu sem entusiasmo a conversa dele e de Poppy. Como havia dito a Harry na noite anterior, ele iria embora hoje, não importa o que acontecesse.

Harry.

Que estava vindo para seus aposentos esta noite.

Que sentia algo por ele. Por quem Severus também sentia algo, mesmo que ainda não estivesse pronto para articular isso.

Se ele algum dia articulasse isso. Ele não estava mentindo quando disse que não queria machucar o menino e foi honesto o suficiente para admitir que era inevitável neste momento. Mesmo que parassem agora, mesmo que nunca mais se vissem, Snape não tinha ilusões sobre como Harry reagiria à morte dele. Ele esperava que seus amigos da Grifinória fossem suficientes para sustentar Harry depois que ele partisse.

Snape passou a língua pelo interior da boca, tocando levemente as pontas de suas presas. Ele vestiu a capa por cima das vestes – ele estava sentindo mais frio desde que voltou. Não apenas sentindo isso no ambiente; ele podia senti-lo deslizar por sua pele e se fixar em seus ossos. Talvez seu corpo estivesse se retraindo, reunindo forças. Seus músculos pareciam latejar de expectativa, como se ele estivesse prestes a ver algo grande, algo incrível.

Ele não queria que fosse incrível. Ele não queria pensar em como seu corpo se transformaria e como seus sentidos cresceriam até que ele fosse algo mais do que ele mesmo, algo extraordinário. Como sua fome o transformaria em uma criatura necessitada e miserável, sob o canto da sereia do sangue, tanto quanto Lupin estava sob o feitiço da lua. Talvez dentre todos, Lupin entendesse sua decisão. Se Lupin estivesse preso em sua forma de lobisomem permanentemente, e tivesse consciência disso, Snape duvidava que ele teria existido por tanto tempo sem acabar com sua vida.

A tentação de ceder e permitir que isso acontecesse era forte, mas, desde o início da idade adulta, ele estava acostumado a avaliar cuidadosamente suas opções. Muitos erros do passado permitiram-lhe reconhecer o que seria a transformação – um glamour, uma miragem – um sonho sedutor que iria, no final, mudar tudo o que ele acreditava ser. Ceder seria um erro. Muito parecido com o que foi receber a Marca Negra.

Sua mente comprou uma imagem de Harry e ele a deixou de lado. Ele não era um erro. Pela primeira vez, ele seria egoísta. Deixando a ética e o bom senso de lado, ele precisava de Harry tanto quanto o garoto precisava dele. E se a sua vida chegasse a um fim prematuro para o bem da Causa – o seu lábio torceu-se sardonicamente – ele teria recebido a sua recompensa. Sua única coisa boa. Uma última experiência pura para focar enquanto ele fechava os olhos e passava deste mundo para o outro.

Merlin, ele bufou. Você está ficando sentimental com sua morte.

— Posso entrar, Severus?

— Você pode.

Albus entrou na sala.

— Você parece bem.

Snape lançou-lhe um olhar afetuoso.

— Você precisa de óculos novos. Estou horrível.

— Como você está se sentindo?

— Como um homem se equilibrando na beira de um penhasco.

Snape observou seu velho amigo mexer inconscientemente com a barba.

Aqua Fresca | SnarryOnde histórias criam vida. Descubra agora