Sua cabeça repousava cansada sobre o braço duro do sofá. Firmina ressonava, emitindo um som baixinho e inconsciente acompanhado de roncos suspirantes.
Estava quente naquela tarde de sábado. O sol estava de rachar, como Dona Fia diria. Os raios solares esquentavam aos poucos a cerâmica da sala e o tronco adormecido da idosa.
A porta de vidro estava encostada na parede, na esperança de algum vestígio de vento adentrar a casa. Mas mesmo assim o ventilador girava de um lado para o outro sobre o hack da TV.
Um sonho turbulento perturbava seu sono. A testa enrugava a cada segundo que se passava, uma gotícula de suor lhe escorria da cabeça ao dorso vagarosamente.
Ela conhecia o lugar como a palma da própria mão. Fazia tempo que aquilo não pairava pela sua mente. Era uma mistura de sonho com lembrança, uma lembrança antiga, de sua infância. Primeiro foram os pêlos dos seus braços que se ergueram, em seguida os da parte de trás do pescoço. A temperatura do seu corpo baixou, as mãos gelaram e o seu maquicilar se enrijeceu.
O chão era de poeira batida. Havia um casebre simples e pequenino próximo a praia. “Aquela casa…”, Firmina pensou enquanto devaneava.
Dedos de uma mão maior que a sua repousaram sobre o seu ombro de estatura infantil. A criança que Firmina havia sido um dia contorceu sua cabeça na direção da figura maior ao seu lado que tinha uma sombra na face, causada pelo sol. O calor daquele fatídico dia e a sensação de molhado sobre a manga da sua blusa eram inesquecíveis. O choro vindo dos seus irmãos. O gorgolejar ao fundo do seu pai que segurava com firmeza uma garrafa de cachaça, encostado no encosto da porta.
Com os olhos cheios de inocência encarou a imensa estrada de chão, um carro grande estava estacionado em frente a casa de sua família. Fia se impressionou, nunca havia visto um daquele antes. O sonho fluia devagar, não parecia real.
Rute estava com os olhos inchados e avermelhados, as bochechas cintilando com fileiras de lágrimas. Ela fitou Firmina, contraindo os lábios já pálidos, depois desviou o olhar, fechando os olhos e derramando mais lágrimas enquanto adentrava o calhambeque.
Fia não conseguia parar de fitá-la enquanto o choro lhe machucava a garganta como arames enrolados ao redor dela, seus dedos pequenos amassavam a borda da saia.
O homem parrudo, mal-encarrado e de pistola na cintura fumava encostado na porta do automóvel, quando viu Rute se aproximando a olhou fundo e torto perguntando: “Simbora, múie?”. Ela assentiu respirando cortado, chorando mais e mais.
Segundos depois a mala desapareceu dos braços da sua irmã. E o timbre da porta do carro se selando invadiu os ouvidos de Firmina e dos demais ali. Outro barulho veio à tona, o do motor esquentando. O calhambeque logo fez a poeira dançar pelo ar e então deslizou seus pneus pela mesma estrada na qual veio.
“Tonho, faz alguma coisa… E-ela não pode… ir”, Firmina chorou mais fitando o irmão mais velho. Antônio apenas negou com um aceno de cabeça, não podia mudar aquilo, seus olhos caídos e lacrimejantes encaravam a figura pequena da irmã mais nova.
Como um instinto primitivo, Fia correu na expectativa de alcançar a irmã. As lágrimas seguiam a percussão do vento igualmente aos seus cabelos. Seus passos faziam a poeira subir, sujando as canelas infantis e magricelas que tinha. O seu coração pequenino batia contra as costelas com tanta força que ela podia senti-lo beirar na garganta. “Maninha Rute! Maninha!”, gritava enquanto corria sem parar, “Rutinha! N-não me deixa, p-por favor”, as lágrimas corriam mais que ela mesma. “E-eu prometo… E-eu vou te encontrar”
Mas aquilo nunca aconteceu, nem em sonho, nem na sua simplória realidade.
O carro não parou. Ele continuou indo e indo até se perder da visão embaçada de Firmina. Cansada, suada e choramingando suas pernas cederam a gravidade. Caiu de joelhos no chão de poeira batida, desabando em lágrimas sofridas e densas. O olhar perdido, os soluços e aquela dor inimaginável no peito a acompanhavam.
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ᴛʀês ᴠᴇᴢᴇs ᴍᴀʀɪᴀ
RomanceCiclos se repetem, ao menos que nós criemos coragem para rompê-los.