"Pedaço por pedaço ele restaurou minha fé
De que um homem pode ser gentil e que um pai pode ficar"— Kelly Clarkson (Piece By Piece)
ALICIA MAGALHÃES
P A R A alguém que está sempre com a cabeça cheia de pensamentos, pensar em nada é reconfortante. Ou deveria ser, em qualquer outro tipo de situação que não fosse aquela que está se desenrolando em frente aos meus olhos, embora pareça que eu não estou presente no momento.
A cada punhado de terra jogado sob o caixão, sinto que eu deveria derramar a mesma quantidade de lágrimas em algum sinal de sofrimento de luto ou algo do tipo; mas não consigo. Não consigo fazer nada, aliás. Não me movo, falo ou desvio o olhar do caixão tampado. Apenas continuo respirando, algo que Jonas nunca mais poderá fazer. E, pela primeira vez desde que o velório começou, eu finalmente consigo pensar em algo que desperta minha mente e faz minha consciência me reprimir por aquele absurdo.
No entanto, não me importo. Não me sinto culpada ou tão pouco triste. Também estou longe da felicidade, mas deixar que a sensação de alívio me preencha conforme a estrutura do caixão vai sendo coberta gradativamente, é inevitável. Não há remorso ou arrependimento nesse tipo de pensamento pela primeira vez em anos, o que faz meus olhos arderem por trás dos óculos escuros.
O sol não dá as caras a algumas semanas e em outras circunstâncias talvez as pessoas ao redor estranhassem o adereço em meu rosto. Talvez até pensassem se tratar de alguma tendência de moda que provavelmente estivesse bombando na internet, e com toda certeza eu concordaria, o que seria uma bela de uma mentira em meio a tantas outras que já tive que contar. O estranho em mentir, é o fato de que quanto mais você o faz, melhor você fica. No fim das contas, tudo é realmente uma questão de prática.
Também fui ficando boa em esconder os arroxeados com o tempo, o que provavelmente melhorou minhas habilidades com a maquiagem. Mas não com o vestuário. Enfim. Em um momento não consigo pensar em nada e em outro aqui estou eu... puxando o fio do emaranhado que permeia em minha cabeça. Ás vezes, não há escapatória.
O caixão. Pisco os olhos e me concentro no caixão.
Ele está soterrado quase completamente agora. Quilos e quilos de terra o empurrando para mais fundo, até desaparecer completamente, em uma promessa silenciosa de descanso e decomposição futura. Escuto os soluços e lamentos das poucas pessoas ao meu redor, a dor da perda de uma pessoa querida para cada uma ali.
Uma pessoa querida. Uma pessoa que com toda certeza deste mundo, Jonas não era. Porém, ninguém ali sabe disso. Ninguém sabe das brigas, dos gritos, da força que a mão dele tinha, do talento nato para histórias esfarrapadas sobre os hematomas pelo meu corpo, o que me faz questionar se alguém aqui já desconfiou minimamente de alguma coisa. Talvez tia Joaquina. Ou o primo Rodolfo. Alberto, seu melhor amigo? Qualquer um. Alguém, que tenha flagrado meu pedido silencioso de ajuda. No entanto, não há ninguém aqui assim. Eles nunca notaram e, se notaram, não se importaram o suficiente para me ajudar.
Finalmente, o caixão é coberto e o enterro se encerra. E é só neste momento que as lágrimas começam a deslizar pelo meu rosto e em questão de segundos, me sinto uma represa rompida, devastando tudo pela frente. Devastada. Aliviada. Caótica. Satisfeita. Não sei qual palavra usar para descrever como estou me sentindo neste momento, mas quando minhas pernas cedem e caio na grama imunda do cemitério, eu suspiro.
Estou livre.
Braços desconhecidos me cercam, me consolando, embora eu não precise de consolo. Eles não sabem disso, no entanto.
— Não fique assim, Alicia. Seu pai está em um lugar melhor agora.
Não reconheço a voz ou faço questão de olhar para a pessoa, tão pouco me preocupo em responder algo. Apenas balanço a cabeça, em concordância. Jonas Magalhães é meu pai e está morto. Realmente, um lugar muito melhor do que ao meu lado e suficientemente distante.
RAFAEL BESSA
C E N T R A D O sempre foi a palavra que melhor me descreveu. Meu lado racional sempre fora muito superior ao emocional e desde muito novo eu já me orgulhava disso. Independente da situação ou adversidade, nada poderia tirar o meu foco e desempenho. Se eu desejasse, então eu teria. Nada era impossível e não existia nada que pudesse me tirar dessa linha.
Até aquele momento. Até aquela noite. A noite do acidente.
De repente, todo o meu foco havia sido extinguido e minha mente, que sempre havia sido muito clara em relação aos pensamentos e critérios, havia apagado totalmente. O fio extenso do emaranhado de pensamentos e lembretes diários relacionados à ações, reuniões, encontros e negócios que circulavam em minha cabeça, deram lugar à uma quietude atípica.
Eu não conseguia pensar em nada enquanto fitava a parede engessada do corredor em minha frente. Já haviam se passado uns quarenta minutos desde que o doutor havia ido embora após me dar a notícia de que tinha declarado a hora do óbito de Luiza, minha irmã e de Miguel, meu cunhado. Quarenta minutos depois e eu ainda estava imóvel no mesmo lugar, sem sequer conseguir raciocinar.
Um dos efeitos colaterais do luto, certamente.
Eu só não compreendia como as coisas haviam acontecido. Como a vida podia mudar tanto em questão de segundos. Milésimos. Como você podia estar parado no sinal tão corretamente, conversando banalidades com o amor da sua vida, fazendo planos para o jantar quando chegasse em casa, pensando em qual história infantil iria contar para seu filho de cinco anos e então do nada ser acertado por um carro desgovernado que ultrapassou dois sinais anteriores.
Dois fodidos sinais ultrapassados por um desgraçado alcoolizado. Mudanças são uma merda e a vida está cheia delas. É inevitável, embora eu as odiasse.
Esfrego os olhos, sentindo a ardência das lágrimas chegando. Não quero chorar e tão pouco levantar do chão do corredor do hospital, embora as pessoas estejam me olhando com aquele tipo de olhar de pena que eu abomino. Não quero voltar para casa e muito menos ligar para o resto da família para dar a notícia. Não quero fazer muitas coisas, mas sei que não posso me agarrar a tais vontades.
Ninguém neste mundo se importa com nossos desejos além de nós mesmos, muito menos a vida. E, seguindo essa linha de raciocínio, finalmente consigo pensar em algo relevante o suficiente para me deixar focado: Zeca, o filho de Luiza e Miguel. O meu sobrinho. Uma criança amorosa e doce que agora está órfão. E esta é a pior parte de toda a tragédia, digo para mim mesmo.
O legado que eles deixaram.
E é por ele que me ponho de pé, ainda me sentindo um pouco entorpecido. Apanho o meu terno amarrotado do chão e o penduro no braço, rumando em direção a saída do hospital sem me preocupar em arrumar a gravata frouxa em meu pescoço. Há respingos de sangue nela.
Quando passo pelas portas duplas da ala da emergência, puxo o celular do bolso e ligo para meu melhor amigo, que por acaso também é meu advogado em tempo integral.
Henrique Cavalcanti atende no segundo toque e, antes que ele fale alguma de suas piadas sacanas, já disparo logo:
— Preciso que você abra um processo de adoção.
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Um Destino Para Dois
RomantizmAlicia Magalhães é uma jovem com traumas de um passado familiar turbulento que se vê obrigada a recomeçar depois da morte do pai. Desempregada, sem um teto para morar e com dividas como herança, ela foge para outra cidade na esperança de encontrar u...