Capitulo 14

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No inicio não conseguia ver nada. Nada além da escuridão. Meu corpo pesado não podia se mover. Mas também não tinha medo. Ouvia sons que não consigo descrever, vozes que não reconhecia chamando por nomes que não me eram familiares. Minhas narinas detectavam cheiros alienígenas ao meu sentido, que não se encaixavam no que eu conhecia. Não sabia se eram flores ou decomposição, perfume ou fedor. Era apenas algo além do que eu compreendia no momento. Então quando pude aceitar meus olhos se abriram aquela cena.
Era uma espécie de jardim que ia até o que parecia um limite. Em um campo coberto por rosas de todas as cores estava um imenso exercito. Feito de fadas e duendes, sprites e dragões, seres alados e terrestres. Mas ali na linha de frente alguns seres se destacavam. Uma linda moça de pele branca ia a frente ostentando uma coroa e um arco. Ao lado um homem portando um par de asas negras usava uma espada. Em fileira vinham varias outras crianças com suas características particulares. Mas contra quem elas lutavam?
Então eu vi. Fazendo uma linha evidente que dividia ao meio o reino estava outro. Formas distorcidas das fadas espreitavam aquela escuridão. Uma mulher de pele pálida caminhava a paços calmos entre suas crias. Eram bruxas e espíritos malignos. Seres obscuros como sombras. De olhos vermelhos esperavam seus inimigos declarados. Ao lado dela, uma forma em decomposição do anjo que estava no outro exercita. Pra cada ser do lado claro havia uma forma sombria.
Então os dois exércitos foram em direção um ao outro. Uma batalha sangrenta ocorria diante dos meus olhos. Fadas e bruxas caiam como moscas. Não havia vantagem entre eles. Só havia uma certeza. Alguém deveria ganhar. Foi quando o anjo foi em direção a sua forma sombria, como um espelho distorcido ele se colocava diante de sua copia e oponente. Mas quando suas espadas iam se tocar eu acordei.
Venho tendo esses sonhos desde que deixei o hospital. Acordei em um leito dias depois do que ocorreu na igreja. Acordei preocupada com tanta coisa que minhas primeiras palavras foram Nero. Sim. Foi por ele que chamei no momento em que meus olhos se abriram. Apesar de não ter a resposta de como ele estava de imediato, perguntei pelos outros.
Jessica me disse que Gabriela foi encontrada na porta de casa inconsciente sem ideia do que aconteceu. As outras garotas foram interrogadas pela policia. Disseram que um rapaz chegou para conversar com ela e as seduzia, depois de alguns minutos ele as convencia a ir até onde ele morava. Porém ele dizia que precisava passar na igreja antes. Após esse fato elas não se recordavam de mais nada.
A descrição que elas tinham do rapaz, em nada, lembrava o Nero. O que me fazia sentir-me mais aliviada. Então meu coração pesou. O que havia ocorrido com o Nero?
A noticia era animadora. Ele havia escapado antes do teto cair. O corpo do pastor foi encontrado carbonizado. Pelo que Laviniah me falou, ele havia completado a primeira faze do ritual, que acabava com sua imortalidade, mas não conseguiu se livrar do demônio que estava em seu corpo e por isso perdeu o controle e se transformou naquele ser horrível.
Pelo que Laviniah havia me contado, Isaque era um pastor que foi amaldiçoado pelo próprio Cristo a séculos atrás. E por isso não podia morrer. Então ele acabou dominado por um demônio que obrigou-o a matar sua esposa e filhos, então ele acabou louco e preso por uma sociedade de magos chamada de O Templo da Luz Negra. Lá ele ficou preso por um tempo e conseguiu se libertar. Após isso quem saberia dizer ao certo o que ocorreu até ali seria apenas o Nero.
Nero foi me visitar algumas vezes porem havia me recusado a vê-lo. Não sabia exatamente como trata-lo ou o que fazer. Era muita coisa para digerir. O fato de meu pai ter sido um anjo era complicado de se lidar, mas saber que ele havia sido responsável pela morte dos pais de alguém era ainda pior. Eu sabia que Nero estava envolvido com o acidente do meu pai, entendo seu sentimento de vingança. Mas até onde isso seria justo pra algum de nós?
Fui pra casa alguns dias depois. Minha cicatrização foi rápida a ponto de impressionar até mesmo os médicos. Vendo que eu estava bem, me deram alta. Hoje as cicatrizes nada mais são do que manchas brancas em forma de três cortes entre meus seios. Uma lembrança do que ocorreu. Desde então tive esses sonhos.
São cerca de 3 horas da manha. Não consigo mais dormir após esses sonhos. Sinto a presença dele esmagadora, mas agora mais acostumada. Sei que ele me observa de cima de uma arvore, através da janela, como sempre fez. Talvez seja hora de encarar tudo que ocorreu e por tudo em pretos limpos.
- Nero! Chamo por ele Pode entrar.
Ele se esgueira pela janela. Muito mais humano agora. Seu rosto denunciava marcas de quem não descansava a dias. Precisávamos resolver isso.
Ele olhou pra mim, esperando o que eu tinha a dizer então juntei coragem.
- Perdoe-me pelas atitudes que meu pai tomou. Lamento muito por tudo que ele fez. Agora que sabe que ele era o ultimo entre todos que mataram seus pais, espero que sua vingança esteja saciada.
- Mas Mihh. Não é isso. Eu...
- Nero. Para e se explicar. Eu disse chorando. Não tem nada que possa ser dito. Cada um se satisfez com o que pode. Não posso mais confiar. Acreditar se você ainda me esconde as coisas.
- Mihh. Não vim até aqui para te dar desculpas. Vim até aqui pra te mostrar tudo. Talvez você não entenda. Mas tem o direito sim de saber a verdade e aceita-la como bem entender. Se não houver em seu coração espaço pra me aceitar tudo bem. Mas ao menos aceite o que tenho a te oferecer agora.
- Certo. Eu quero ver.
Então estiquei minhas mãos até ele. Eu ainda o amava. Mas precisava saber de toda a verdade. Ele segurou minha mão e deitou a meu lado. Olhávamos um nos olhos do outro então ele me beijou.
Seus lábios tocaram os meus como o veludo toca uma pele despreparada. Um arrepio subiu pelas minhas costas e quando percebi estava lá.
Era um tempo a muito passado. Minha visão estava embaçada, pintada de vermelho. Não estava mais vendo por mim, eu estava vendo pelos olhos de Nero. Um homem me pegou no colo. Estava embaçado, não conseguia ver. Com um pano ele limpou meus olhos. Em meu pescoço colocou uma corrente pesada. Era tudo que tinha de meus pais. Entregue a uma família, fui aceito como filho. Mae e pai eram como eu os chamava. A mulher cuidava de mim. Quando eu chorava ela vinha a meu berço. Dava-me de comer, me trocava e com um beijo me deixava a dormir. Cresci rápido e com três anos eu já entendia alguma coisa. A mulher que me adotou estava gravida e sempre me dizia que aquela que ali estava em sua barriga era minha irmã e que eu devia protegê-la. Eu vi Laviniah nascer e crescer. Mas com sete anos os caçadores nos encontraram. Aquele que chamei de pai foi morto pelos caçadores que agora eram apenas dois, aquela que chamei de mãe nos protegeu e me fez fugir com Laviniah.
Fugi por dias até ser encontrado por um homem. Seu nome era Hemisarê. Ele dizia que era como eu. Filho de um anjo com demônio. Eu tinha medo, mas também tinha fome. Laviniah pequena também precisava comer. E esse homem cuidou de nós. Hemisarê cuidou de mim e de minha irmã como se fosse um pai e assim passamos a chama-lo. Ele dividia seu corpo com um anjo caído chamado Samael que nos deixava chama-lo se tio. Com Hemisarê aprendemos a ler e escrever. Aprendemos a usar nossos poderes e Laviniah com dez anos libertou sua forma verdadeira. Samael nos ensinou a lutar e caçar. Ensinou-nos a tomar apenas o necessário e que não devíamos matar. Com dezoito anos parei de envelhecer. Laviniah com quinze parou de envelhecer e me perguntou sobre seus pais. Minha consciência pesada me obrigou a menti. Disse que a mãe morreu no parto e o pai em guerra. Jurei vingança aos assassinos, não por mim, mas por ela. A única irmã que tive.
Após estar apto pra viver por conta própria Hemisarê nos deixou ir. Sabia que não podia deter meu desejo então eu e Laviniah caímos no mundo. Conheci varias garotas e as perdi. Decidi que não amaria mais e me dedique a minha caçada.
Encontrei minha primeira presa vivendo ainda em Roma. Ainda vivia no templo da luz negra. Então invadi o lugar. A luta entre nos dois, foi difícil mais eu venci. Fugi após descobrir que o outro assassino havia deixado o templo há muito tempo e segui seus passos e seu encalço.
Observei o templo da luz negra até que ele caiu. Os sobrenaturais que ali viviam haviam se tornado neutros e se chamavam de mitos. Eles acabaram se tornando uma sociedade e tinham um pacto com os anjos e demônios. Eles não se intrometeriam em seus assuntos e poderiam viver em paz. Assim cada cidade tinha seus próprios conclaves onde um anjo, um demônio e alguns representantes dos mitos locais se reuniam para manejar a cidade.
Eu continuei minha viajem. Assim que achei seguro reivindiquei as posses da família de Laviniah e ficamos ricos. As posses valorizadas sempre renderiam lucros. Então vivemos em paz, até encontrar Isaque novamente. Ele me contou sua historia e disse que sabia onde estava o ultimo assassino. Isso foi a alguns anos.
Pelos olhos de Nero eu passei a observar eu quando criança e Miguel meu pai. Pelos olhos de Nero eu me vi crescer e decidi que não era justo mata-lo. Miguel era o ultimo que restava do templo da Luz negra. Ele sabia quem era o assassino. Mas eu não devia ataca-lo. Não podia mata-lo. Deveria esperar ele sair então conversaria com ele.
Foi no dia que meu pai saiu comigo. Pelos olhos do Nero segui o carro. Por vários quilômetros esperando o momento certo. Foi quando ele apareceu. Uma criatura, um demônio. Ele foi em direção ao carro onde estavam Miguel e eu. Acelerei a moto. E passei em frente ao carro. Senti o desejo do Nero de salvar aquela família. Então ele largou a moto e pulou em direção ao demônio. Pego de surpresa o demônio o atingiu n o peito e ele bateu no para brisa do carro.
Eu me lembro disso.
Eu vi essa cena de uma perspectiva diferente, de dentro do carro.
O carro perdeu o controle e capotou. Miguel saiu do carro, mas antes de tomar sua forma verdadeira o demônio o jogou de volta no carro e ele foi perfurado pelas ferragens. Se estivesse em sua forma verdadeira teria sobrevivido. Mas assim como estava não resistiria.
Ele tentou se mover. Eu, vendo tudo como o Nero, gritei que cuidaria disso. Mas não foi o suficiente. O demônio que na época na sabia quem era, hoje reconheço como Isaque. Lutei. Digo. Nero lutou. Mas não derrotou a criatura que fugiu.
Desesperado eu arranquei aporta do carro. Lembro-me dessa cena. Eu sonhei com ela. Mas era uma lembrança do Nero. Foi por isso que sobrevivi. Ele tentou salvar meu pai, mas o carro explodiu. Ele me deixou na estrada onde fui encontrada e levada ao hospital. Senti sua culpa. Vivendo por ele fui embora.
Nero só voltou essa cidade depois que Isaque ligou pra falar de uma proposta. Eu havia esquecido a vingança. Mas a chama se acendeu. Eu traria a ele o que faltava de um ritual de purificação e ele me contava onde estava o ultimo assassino. Voltei pra cidade e vivendo como um estudante comum eu me conheci. Por sua perspectiva eu era linda. Era perfeita. Ele achava que eu era mais do que ele merecia.
Queria me contar tudo, pediu conselhos a Hemisarê. Mas o medo de me perder era maior. Ele realmente me amava. Quando nossos lábios se soltaram eu não era mais o Nero. Eu era apenas a Michaella de novo. Não precisava ver mais nada. Tudo aquilo me lembrava apenas da conversa que tivemos quando pedi pra que ele me amasse, ficasse comigo.
Ele olhou em meus olhos como se soubesse exatamente o que eu estava pensando. E talvez soubesse mesmo.
- Um dia eu te disse que ficaria com você, mas que, um dia eu precisaria de seu perdão.
Ele me disse.
- Mas você não matou meu pai Nero.
- Mas queria que me perdoasse por não salva-lo. Pelo meu desejo de vingança fosse maior do que meu desejo por você. Por te envolver em tudo isso.
Olhei pra ele com compaixão. Ele era filho de um anjo e um demônio. Era orgulhoso por natureza. Não precisava estar em sua cabeça pra saber disso. Não precisava estar em seu coração para saber que era um esforço hercúleo para ele estar diante de mim e assumir a responsabilidade de tudo que sofri até agora.
Então olhei em seus olhos e apenas disse.
- Eu te amo.
Abracei-o com força e beijei-o com todo o amor e desejo que eu tinha. Ele por sua vez se entregou a mim. Algo que nunca havia feito desde que começamos a namorar.
Adormeci ali em seus braços. Deitada em seu colo tive descanso pela primeira vez desde que perdi meu pai. Agora eu estava feliz. Havia perdoado o homem que me salvou.

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- Agora eu estava feliz. Nero e eu estávamos juntos. Sentia-me segura. Os sonhos não paravam. Mas agora eles eram outra coisa para me preocupar.
- Certo Michaella. Fico feliz por ter superado esse trauma. Disse o Psiquiatra Mas e esses sonhos? Quer falar sobre eles?
- Não doutor. Acho que por hoje é só.
- Bem só uma ultima pergunta. Você acredita em tudo que me contou hoje?
- Seria o tema de um bom livro não concorda?
- Sim Michaella. Você tem uma ótima imaginação. Vou sentir sua falta.
- Eu também doutor.
Sai da sala do Psiquiatra. Nero e Jessica me esperavam do lado de fora. Eu já estava mesmo cansada e ainda tinha aula pela frente. Jessica continuava a flertar com o office-boy, ainda não aceitou o fato de que ele não vai dar mole para ela.
- Vamos.
Eu disse.
- Claro meu amor.
Nero me pegou pela mão. Jessica fazia uma careta de nojo como sempre.
- O doutor acreditou na sua historia?
- Claro que não Nero.
- Pois devia, afinal, nós acreditamos nele.
- Nero deixa de ser idiota disse Jessica que frase de filme.
- Mas é uma frase de filme respondeu ele era um filme muito bom que eu vi.
Entramos em seu carro. Estava feliz por que ele estava ali comigo. Mas eu tinha certeza de uma coisa. Isso não acabaria por ali, eu era um meio anjo e ainda tinha muita coisa que gostaria de saber sobre o mundo do meu pai e sobre o mundo de Nero.

Continua.....

Gênese: Entre o céu e o infernoOnde histórias criam vida. Descubra agora