𝙄𝙣𝙘𝙚𝙧𝙩𝙚𝙯𝙖𝙨

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DIONE

Check-in. Check-out.

Repita o processo.

A verdade é que transitar entre instalações comerciais deste tipo requer a paciência de Buda, mas o estoque de benevolência em Dione estava encontrando seu fim.

St. Alaunus vem sendo considerado há algum tempo como o melhor dirigível de todos, não é uma afirmação infundada, é um fato. Todo o requinte, cuidado e cômodos perfeitamente dispostos faziam do lugar um verdadeiro paraíso, então a viagem não foi ruim.

Leonard era apenas uma vírgula, pois ela conseguiu o amuleto e não perdeu nada precioso.

No entanto, agora com os pés na área de Chaenjiun, seus poros se dilatavam em antecipação. Chaenjiun podia principalmente ser visto como um ser excêntrico, então Dione não duvidava que o maldito sentiria sua primeira lasca de unha chegando no Canadá e mandaria um presente de boas-vindas.

Dione nem se deu o trabalho de ler o crachá quando uma voz soou em suas costas, apenas fitou e foi respondida com enrijecimento.

— Senhora, eu... eu preciso que a senhora assine estes papéis — e empurrou folhas na direção de Dione.

Regras chatas, tediosas, preguiçosas, dispensáveis, desagradáveis.

Entre uma assinatura e outra parou para checar Daisy.

Ela estava agachada conversando animadamente com um garotinho de cachinhos amendoados. Parecia muito interessante, o sorriso largo que Daisy ostentava era acolhedor. Amável.

E foi como se isso a colocasse sob outra luz, uma nova visão. Daisy era sempre tão adorável com Dione e apenas com ela(até porque elas não viam muitas pessoas), que vê-la sendo assim com uma pequena forma de vida foi estranhamente esclarecedor.

Os papeis já estavam todos preenchidos quando ela caminhou até Daisy e foi recebida por lábios arqueados num sorriso fino, os olhos dela brilhavam em algo que Dione não conseguia reconhecer.

— Está tudo pronto.

O menino fitou Dione com as grandes orbes castanhas e deu uma risadinha. Assim que se levantou, Daisy bagunçou o cabelo dele e acenou.

— Até mais, pequenino.

Ele acenou de volta e sua pequena figura foi sumindo à medida que Dione e Daisy adentravam os corredores do Red Palace.

O quarto foi enevoado pelo vapor assim que Dione pôs os pés fora do banheiro, e dando uma olhada para trás, notou que o espelho de borda cromada em ouro estava embaçado

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O quarto foi enevoado pelo vapor assim que Dione pôs os pés fora do banheiro, e dando uma olhada para trás, notou que o espelho de borda cromada em ouro estava embaçado.

Sim, um banho quente era tudo que ela precisava. Espairecer por horas a fio numa banheira exageradamente grande a fez revisar seus planos e se acalmar diante da ameaça iminente.

Quando ela voltou-se para Daisy notou que a mulher já estava encarando.

— Vejo que escolheu bem.

O cetim azul celeste caiu feito uma pluma no corpo de Daisy, o breve decote bordado com renda ficou notável.

— Tem muitas coisas bonitas aí dentro — ela apontou a cabeça para o guarda roupas. — São todas suas?

— Certamente. — Dione remexeu nos cabides em busca de algo que substituísse seu roupão — é um hotel antigo, já passei por aqui antes.

— Até os ternos?

Dione franziu o cenho e continuou a procurar.

— Sim? — a peça estava ali! A camisola de seda confortável que usou tantas vezes foi encontrada. — Já tive acompanhantes aqui, os convites chegavam até mim, então geralmente eu quem os trazia. Dessa forma, deixei o necessário guardado.

Se Daisy expressou qualquer reação, Dione não sabe, mas o silêncio reverberou pelas quatro paredes por instantes antes dela responder.

— Entendi.

E Dione não entendeu, mas ela não estava particularmente curiosa para seguir o raciocínio.

Ela puxou o roupão pelos braços e passou a camisola pela cabeça. Em um pé estava na cama, bateu palmas e o fogo das arandelas cessou; a iluminação do luar tinha sua intensidade barrada pelas cortinas de tecido grosso.

— Você acha que vamos morrer? — o rosto de Daisy manteve-se virado para cima, as feições não traindo seu tom calmo. — Gostaria de ter tocado o mar antes. Talvez conhecer um arquipélago com novas espécies.

Ao longo dos últimos séculos Dione não sentia que estava procurando a morte, mas também não fazia muita questão de manter-se viva — Chaenjiun fazia parte de algumas(muitas) exceções, ela nunca deixaria barato qualquer inclinação maléfica para o lado dela.

Sua existência foi quase que inteiramente baseada em pontos fugazes que a levaram para fora da realidade, muitas vezes sendo o apreço pela presença de terceiros queridos.

Quando não estava apoiando-se no ato de vivenciar alguma afeição, sua vida se erguia num compilado de morte-indiferença-vazio. A compaixão já sendo deixado de lado a muito tempo, disponível para poucos.

— Eu não sei — respondeu sinceramente.

No entanto, na situação atual, ela não podia se dar ao luxo de morrer. Seu desaparecimento da existência traria consigo a consequência da morte de Daisy, e isso ela não desejava.

— As pessoas da minha família nunca tiveram sorte — lamentou. — Vivíamos em uma aldeia, minha mãe nunca teve irmãos, tampouco eu. Assim que casei com Dietrich, dei a luz à uma bela menina chamada Laya, vivemos felizes por tempos até a aldeia ser dizimada por um ataque inimigo e Dietrich falecer. Laya foi levada para longe de mim e pouco depois fui transformada.

— Você...

Dione acenou.

— Consegui encontrá-la muitos anos depois vivendo num vilarejo tranquilo, Laya já tinha mais de 50. Preferi não me mostrar e esse segue sendo um dos meus maiores arrependimentos. — Dione pôs uma mecha solta atrás da orelha. — A linhagem de Laya seguiu da mesma forma, apenas um filho por vez, sempre sozinhos ao mundo. Acompanhei de longe cada um de seus descendentes, por isso vi a queda do último.

Dione se recorda perfeitamente do olhar afável de Dragomir St. Kalanthos, um senhor de setenta e oito anos que vivia num casarão muito bonito. Infelizmente, era bastante solitário e não usufruiu de amigos, família e filhos.

Seu último suspiro se deu quando estava sentado em sua poltrona frente à lareira, Dione pegou suas mãos e foi recebida por um sorriso sereno que parecia carregar sabedoria ilimitada.

— Sinto muito... — lágrimas marejaram os olhos de Daisy — acredito que ele tenha obtido uma paz ao vê-la em seu último momento.

Dione não queria responder, qualquer palavra que pudesse sair preferiu se manter emaranhada.

Em algum momento do silêncio foi rodeada pelo abraço apertado de Daisy, a pele gélida não machucou. Pelo resto da noite sua vontade de ir atrás de Chaenjiun se dissipou.

Dione KalanthosOnde histórias criam vida. Descubra agora